Afundamento de porta-aviões desativado é resultado de sequência de erros e catástrofe anunciada, dizem ambientalistas

Brasil

Operação ainda é cercada de incertezas, com consequências para o meio ambiente ainda difíceis de mensurar.

Crime ambiental e catástrofe anunciada. É nesses termos que ambientalistas ouvidos pelo g1 descrevem o desfecho do caso do porta-aviões desativado São Paulo, afundado na sexta-feira (3) pela Marinha do Brasil após passar meses vagando pelo mar em área próxima à costa pernambucana.

Para o diretor de Programas do Greenpeace Brasil, Leandro Ramos, o afundamento do navio é resultado de “uma sequência de erros”.
“O que a gente observou foi uma sequência de erros que terminou nessa decisão trágica de colocar no fundo do mar uma quantidade de materiais tóxicos que a gente não sabe qual é”, afirmou.
Na avaliação de Ramos, os equívocos começam já na venda da embarcação à empresa turca Sök no leilão realizado em 2021.
“Esse leilão foi questionado por alguns de seus participantes. Depois, quando o [porta-aviões] São Paulo saiu do Brasil, já havia uma liminar da Justiça do Rio de Janeiro exigindo mais informações sobre a transação. E ele [o navio desativado] foi mesmo assim”, diz o ambientalista do Greenpeace.
“Quando o navio estava para chegar à Turquia, fizemos uma mobilização para sinalizar que faltavam informações sobre como ele seria desmontado. E o Ibama chancelou a ida do navio para lá mesmo com lacunas de informação e falhas de inspeção”, relembrou Leandro Ramos.

Na visão do ambientalista, a decisão de fazer o navio submergir a 5 mil metros da superfície foi tomada sem uma avaliação adequada dos danos que o amianto e outras substâncias tóxicas presentes no casco da embarcação poderiam causar no ecossistema marinho.
Com isso, na sua avaliação, o Brasil descumpriu pelo menos três tratados internacionais dos quais o país é signatário:
A Convenção de Basileia, de 1992
A Convenção sobre Prevenção da Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e Outras Matérias, também conhecida como Convenção de Londres, de 1972;
A Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, de 2001.
“Se o Brasil está levando a sério a tarefa de assumir o protagonismo nas questões ligadas ao meio ambiente, essa era uma excelente oportunidade de mostrar isso para além das palavras”, comentou.
Em vez de afundar o navio, o correto seria, segundo Ramos, recuperar a capacidade de navegação da embarcação e levá-la a um estaleiro para ser desmontada.

O porta-aviões já era considerado uma “bomba-relógio” pelos ambientalistas.
Não só pelo tempo em que passou à deriva, como pelos problemas detectados na estrutura, que estava com três buracos no casco e, segundo a Marinha, perderia a capacidade de flutuar de forma autônoma até meados de fevereiro.
“A ideia era fazer os reparos básicos para garantir a navegabilidade até que ela fosse a um estaleiro de forma segura. Era preciso fazer a retirada do amianto e, depois, a reciclagem técnica e ambientalmente correta do restante da estrutura. Mas tudo isso vai para o fundo do mar”, lamentou.
“Catástrofe anunciada”
Entre os pontos ainda incertos no cenário deixado pela submersão do porta-aviões desativado, está a imprecisão sobre a quantidade de amianto e de outros poluentes na estrutura do navio.
O Ministério Público Federal (MPF) chegou a informar, com base em informações da Marinha, que a embarcação tinha 9,6 toneladas da substância, mas os relatórios de inspeção do navio são parciais e não foram detalhados.
A engenheira civil e fundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), Fernanda Giannasi, se emocionou ao saber da notícia do afundamento do porta-aviões.
Ela explica que a substância é um mineral insolúvel na água, que fica na natureza “por uma eternidade”.

Entretanto, não há estudos que mostrem os possíveis efeitos da presença desse material no ambiente marinho.
“Nós estamos trabalhando com uma amplitude muito grande de incertezas. Com a deterioração das partes metálicas, o amianto se solta e é uma carga poluente que pode ser ingerida pela fauna daquela profundidade”, alertou
Giannasi complementa, dizendo que o amianto é um material que, “além de insolúvel, é indestrutível ao fogo e ao ataque de bactérias”. “Quando tivermos correntes marítimas, essas fibras, que são muito leves, podem ficar na água e ser ingeridas pelos seres vivos”, avaliou.
Embora as consequências nas espécies marinhas sejam ainda obscuras, os impactos do contato com o amianto no organismo humano e em mamíferos são amplamente conhecidos.
A engenheira lista entre eles o desenvolvimento de um mesotelioma – tipo de câncer agressivo que pode atingir o pulmão, o peritônio e o pericárdio – os dois últimos são tecidos que revestem, respectivamente, a pleura pulmonar e o coração.
“É uma fibra tão ‘eterna’, que pode provocar doenças até 60 anos depois do contato. E a doença, quando eclode, é cruel, leva a um sofrimento atroz e mata em menos de um ano. Os peixes podem ingerir e não sabemos o que pode acontecer com eles. Considero uma catástrofe anunciada e um crime ambiental de todos os envolvidos. É uma aberração o que foi feito”, comentou Giannasi.

Para ela, as autoridades brasileiras vão sofrer muitas críticas da comunidade internacional pela forma como o caso foi conduzido. “A menos que a Marinha apresente argumentos convincentes, nós vamos ser execrados. Estou com o coração muito apertado”, disse.
“A pior das medidas”
Outro pesquisador que lamentou o afundamento foi Múcio Banja, doutor em Oceanografia e professor de Ecologia da Universidade de Pernambuco (UPE).
“Eu acho que foi a pior medida de todas. Foi uma forma de se livrar de um problema gerado por questões legais”, avaliou, ressalntado que a embarcação tem muitos contaminantes.
Entre os diversos materiais presentes em estruturas de navios como o ex-porta-aviões São Paulo, ele enumera, além do amianto, as tintas incrustadas no casco, resíduos de óleo e lâmpadas fluorescentes.
“Por mais que digam que o combustível tenha sido retirado, ainda há resquícios. O mais grave de tudo isso é a questão ética. O oceano não pode ser considerado uma área de depósito do continente”, salientou.
No meio do impasse envolvendo o destino que tomaria o antigo porta-aviões, faltou, na avaliação do especialista, responsabilidade.
“Se existia a possibilidade de trazer a embarcação para um porto e fazer o reaproveitamento do metal, era uma solução, mas ninguém quis assumir. Caso haja um problema no futuro, ninguém vai pagar por isso”, destacou Múcio Banja.

Banja ressalta que todo o material, de alguma forma, vai atingir a cadeia reprodutiva dos oceanos e não há como prever o que pode ocorrer em consequência dessa decisão.
O pesquisador lembra ainda que, uma vez submerso, o navio precisa ser acompanhado para que os efeitos sejam calculados.
“Mas quem vai fazer o monitoramento de uma embarcação que está a 5 mil metros de profundidade? É mais um ato de descaso com o meio ambiente e a saúde humana. Infelizmente”, lamentou.
Entenda o que aconteceu
A Marinha informou ter afundado, no fim da tarde de sexta-feira (3), o porta-aviões desativado São Paulo.
“O procedimento foi conduzido com as necessárias competência técnica e segurança pela Marinha do Brasil, a fim de evitar prejuízos de ordem logística, operacional, ambiental e econômica ao Estado brasileiro”, afirma a força naval, por meio de nota.
Nesta sexta, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) liberou que a Marinha afundasse o porta-aviões, rejeitando um pedido do Ministério Público Federal (MPF), que via grave risco ambiental na decisão.
Três buracos no casco da embarcação fizeram com que o navio se enchesse de água, o que tornou o afundamento inevitável, segundo uma inspeção realizada pela Marinha do Brasil.

De acordo com o documento, se nada fosse feito, o porta-aviões iria afundar de forma descontrolada até meados de fevereiro.

Fonte: G1