Popularizou-se que “basta privatizar, cortar impostos e deixar o mercado em paz” que a mágica vai acontecer e a economia vai decolar. Mas esta oposição entre Estado e mercado nunca se verificou no desenvolvimento histórico do capitalismo real. Nunca existiu na realidade concreta uma economia pura dissociada da política. Karl Polanyi aduz que o “mercado nacional” foi o resultado de intervenções estatais planejadas. Como o mercado precisa de uma moldura jurídico-administrativa, Gunnar Myrdal alega que mesmo o laissez-faire é uma construção política.
A Grã-Bretanha, berço do liberalismo, recorreu a políticas de Estado para se desenvolver: cercamento dos campos; tarifas alfandegárias protecionistas; Atos de Navegação; incentivo às Companhias das índias Orientais e Africanas; campanhas militares etc. Uma vez industrializada, porém, passou a pregar externamente o laissez-faire. Usando o seu poder naval, impôs acordos desiguais e forçou a abertura dos mercados nacionais às suas manufaturas e finanças. Foi o caso do Tratado de Cooperação e Amizade de 1810, que levou à abertura dos portos brasileiros aos ingleses, em condições privilegiadas. “Chutando a escada” que usou para se desenvolver, recorreu ao discurso do “Estado mínimo” para subjugar países periféricos e conformar a nova ordem econômica internacional sob o seu império.
Os EUA, conjunto de ex-colônias inglesas, viram na industrialização uma continuação necessária para garantir o resultado obtido pela Guerra de Independência. Contra o Sistema Britânico de livre-comércio, Alexander Hamilton, primeiro secretário de Tesouro dos Estados Unidos, durante o governo de George Washington, propôs um modelo de desenvolvimento industrial orientado ao projeto nacional e guiado por instituições políticas fortes. Da mesma forma, o economista Henry Carey, assessor econômico de Abraham Lincoln, propugnava medidas protecionistas para enfrentar a supremacia britânica. Após o “crash” da Bolsa, em 1929, foi a vez das intervenções econômicas keynesianas entrarem em cena para salvar o capitalismo de si mesmo. Com o advento da 2ª Guerra Mundial, as políticas de inovação tecnológicas passaram a ser capitaneadas pelo Pentágono e uma rede de agências públicas.
Curiosamente, hoje os EUA repetem o padrão dos seus antigos colonizadores, exportando para o mundo o mito liberal do “self made man”. O maior símbolo desta cultura empreendedora é o fundador da Apple. Steve Jobs dizia que o sucesso de sua empresa se devia antes à capacidade de sua equipe ser um pouco “maluca” do que competente. Sempre vestido como jovem universitário – embora tenha abandonado os estudos -, o seu estilo pessoal e a sua inusitada biografia reforçaram a ideia romanceada de que a Apple teria sido obra de um gênio individual.
Apesar dos méritos da empresa, o Estado sempre esteve por trás das tecnologias revolucionárias que propiciaram a criação dos seus principais produtos. O grande trunfo da Apple foi saber reconhecer e integrar tecnologias emergentes com grande potencial, mas tais tecnologias não poderiam existir sem os programas de pesquisa governamentais, as iniciativas militares e outras pesquisas financiadas com recursos públicos. De acordo com Mariana Mazzucato, nada menos do que doze tecnologias desenvolvidas sob patrocínio estatal foram indispensáveis para a criação do Iphone.
Nós, da Comunhão Popular, acreditamos que a economia não se reduz a relações comerciais. A independência nacional depende do desenvolvimento técnico-científico-industrial, pois soberania política sem independência econômica não passa de mera formalidade em um contexto geopolítico hierarquizado pela divisão internacional do trabalho. Defendemos, sobretudo, que o sentido da atividade econômica não é meramente autorreferencial nem se reduz à afirmação de poder “nacional” per se. Todo desenvolvimento deve ser integral, portanto orientado à vida humana, sem se reduzir ao paradigma eficientista da tecnocracia.