Clara Costa já cursou serviço social na instituição e integrou movimento negro. Após passar novamente no vestibular, a entrada dela pelo sistema de cotas foi negada pela banca de heteroidentificação. Pesquisadores defendem pluralidade da negritude na Amazônia.
Sistema de informação é o segundo curso que Clara Costa, de 26 anos, quis cursar na Universidade Federal do Pará (UFPA). A aprovação dela no vestibular para 2023 vem após ela já ter feito serviço social, entre 2013 e 2018. Naquela época, ela já era cotista pela cor e por ser estudante de escola pública. Mas desta vez, ao voltar à instituição de ensino ela passou pela banca de heteroidentificação de cotistas e teve a entrada negada.
A banca de heteroidentificação foi criada para assegurar que a autodeclaração de estudantes cotistas seja validada pela UFPA. O objetivo, segundo a universidade, é evitar fraudes. No entanto, para Clara, o processo acabou tirando dela o direito de acesso à universidade pelo sistema de cotas, que é uma política de reparação histórica a fim de pluralizar o acesso ao ensino superior.
Clara passou por duas salas, onde preencheu papéis com informações pessoais, incluindo a autodeclaração de etnia. Ela se considera uma mulher negra, com a pele parda.
“Me orientaram a assinar um documento me autodeclarando, preenchi, entreguei o documento, e ele foi avaliado por uma banca de cinco pessoas. Na mesa apenas uma delas era negra. Não durou nem um minuto. E em seguida fui informada que eu tinha sido reprovada e tinha que seguir para uma banca recursal para eles reavaliarem minha situação”.
Já na segunda banca, desta vez havia com três servidores, ela deveria preencher um novo formulário, com identificação, incluindo as características fenotípicas, e citar três situações de racismo que tivesse sofrido. A estudante conta que o primeiro caso de racismo que lembra ter vivido foi aos 7 anos de idade, com uma professora de ensino fundamental.
Clara afirma que o processo de descrever no formulário foi uma nova violência, ao fazê-la reviver novamente as experiências traumáticas do racismo. A análise das resposta levou menos de um minuto, segundo ela.
“Foi bem complicado, naquela sala mesmo vi algumas pessoas chorando, revivendo seus casos de racismo, me senti muito violentada, porque falar sobre racismo sofrido é um processo doloroso. Já estudei na UFPA, já participei inclusive de vários debates raciais e também vítima de diversas situações de racismo. Tive que descrever naquele momento”.
O resultado da negativa foi publicado no site do Centro de Registro e Indicadores Acadêmicos (CIAC) da UFPA. “Quando recebi, fiquei revoltada, primeiramente porque a banca responde com uma única palavra (indeferido), sem justificativa e sem dar um tratamento humanizado. E, segundo, porque há pessoas brancas deferidas”.
“Então, a banca está pecando nas suas avaliações, sendo totalmente ineficiente no que se propõe que é incluir pessoas negras na universidade, deixando de compreender a diversidade da nossa questão racial”.
Durante a formação em serviço social, Clara inclusive integrou ativamente movimentos negros e chegou a palestrar em eventos acadêmicos sobre questão racial.
Em nota, a UFPA informou que “o processo de heteroidentificação complementa a autodeclaração dos candidatos que concorrem às vagas reservadas para negros(as)” e enfatizou que “as pessoas pardas que têm direito ao uso de vaga da cota são aquelas vistas como negras pela sociedade e que, por isso, são discriminadas e agredidas – confira o posicionamento completo ao final.
Subjetividade e diversidade
Segundo a UFPA, de 2010 a 2022, ingressaram 41.309 candidatos negros (de cor parda e preta). Em paralelo, o número de fraudes no sistema de cotas 2022 foi de 68 denúncias, incluindo casos relacionados a cotas raciais e pertencimento étnico de indígenas e quilombolas. Para combater isso, foi criada a banca avaliadora, de caráter subjetivo, no processo de entrada de estudantes cotistas.
A jornalista e pesquisadora, Flavia Ribeiro, que é integra o Centro de Estudo e Defesa do Negro (Cedenpa), Rede Fulanas-Negras da Amazônia Brasileira e a Rede Nacional de Cibertativistas Negras, a banca é uma conquista para evitar fraudes, assim como as cotas são para reparar a exclusão histórica de pessoas negras no ensino superior, e mais recentemente também em outros âmbitos, como em concursos públicos.
“(A avaliação) É uma medida necessária e precisa ser subjetiva, porque não tem uma como ser medida objetiva, avaliando por exemplo, se a pessoa tem um nariz com não sei quantos centímetros; a pele de certa tonalidade; mas ela olha para um conjunto de características, que faz com que essa pessoa seja lida como negra”.
Para Flavia, já que a subjetividade está interligada no processo, é preciso que os servidores responsáveis sejam qualificados. “Essas pessoas que estão na banca precisam entender a diversidade da negritude, que existe principalmente na Amazônia. É diferente ser negro na Bahia, no Rio Grande do Sul. Não existe um padrão”.
A ativista Regina Santos, que é coordenadora da estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, afirma que as bancas são extremamente necessárias porque “ainda há pessoas que usam sem pudor de esquemas para fraudar algo tão importante como o sistema de cotas e retirando a possibilidade de acesso do povo negro à universidade.
“Por outro lado, vivemos em um país extremamente miscigenado, embora essa coisa do colorismo para mim seja uma doença inventada pelo colonizador”.
Santos declara que “é necessário um olhar apurado, sensível, e com extrema acuidade, para perceber, no contexto da miscigenação, sobre pessoas que possuem características que a farão sofrer racismo. No Brasil o racismo é baseado em fenótipo, na aparência, no entanto não se pode desconsiderar as diversidades, que são bem complexas. Não existe negro brasileiro, mas sim negros brasileiros”.
Ela defende ainda que as bancas de heteroidentificação devem ser compostas por “pessoas com vivência na localidade, com capacidade de identificar histórico de discriminação, não necessariamente com gente graduada e que definitivamente a banca não pode ser formada só por brancos”.
Enquanto o imbróglio não se resolve, depois de ter sido indeferida, agora Clara busca as medidas para que consiga finalmente entrar no novo curso que escolheu na carreira. Nesta segunda-feira, ela foi até a UFPA solicitar acesso à justificativa pela negativa, o que deve levar de 20 a 30 dias.
“Vou correr atrás de um processo para garantir um direito meu, mas é um absurdo a negligência e o tratamento que as cotas estão tendo. Entrar pelo sistema não é esmola”.
O que diz a UFPA
A UFPA divulgou uma nota sobre o caso – confira a íntegra:
“O processo de heteroidentificação complementa a autodeclaração dos candidatos que concorrem às vagas reservadas para negros(as) na UFPA. A finalidade é fazer cumprir o que manda a lei, efetivar a política afirmativa e evitar possíveis fraudes. Até 2020, a UFPA adotava a autodeclaração como único critério para reconhecer o direito de estudantes negros (as). Com o crescimento de denúncias de uso indevido dessas vagas por pessoas não negras, fosse por desconhecimento do público a que se destinam a política, fosse intencionalmente (tentativa de fraude), a instituição passou a certificar a autodeclaração com apoio da Banca de Heteroidentificação.
Pela Lei 12.711/2012, possuem direito às vagas reservadas pela cota racial: 1) as pessoas negras de cor preta; 2) as pessoas negras de cor parda; e 3) as pessoas indígenas. A UFPA enfatiza, entretanto, que as pessoas pardas que têm direito ao uso de vaga da cota PPI são aquelas vistas como negras pela sociedade e que, por isso, são discriminadas e agredidas, perdendo oportunidades sociais e/ou profissionais pelo fato de serem negras. Essa ênfase consta no Edital de abertura do Processo Seletivo, no formulário de inscrição on-line e no Edital de Convocação para Habilitação dos candidatos classificados.
Desde o PS 2021, os(as) candidatos(as) autodeclarados(as) negros(as) e classificados(as) em vagas de cotas PPI precisam se apresentar à Banca de Heteroidentificação, que avalia o(a) candidato(a) tomando por referência exclusivamente o fenótipo social do(a) estudante. O fenótipo social é um conjunto de características pelas quais as pessoas são vistas e consideradas negras (a exemplo da cor da pele, textura do cabelo, formatos do rosto, lábios e nariz) e que lhes deixam vulneráveis às discriminações e ao racismo. Não são consideradas pela banca informações de ascendência (origem dos/as candidatos/as) ou quaisquer registros (civis ou militares) ou documentos.
A ampla diversidade fenotípica das pessoas negras de cor parda as coloca desde próximo às pessoas brancas até próximo às pretas. Quanto menor a presença de traços tipicamente negroides em uma pessoa parda maior a sua permeabilidade na sociedade, que por vezes pode considerá-la como pessoa negra e noutras, como não negra, condição de alternância não vivenciadas pelas pessoas que carregam um conjunto indubitável de marcas de pessoa negra. Assim, uma pessoa que se autodeclara parda pode não ser vista como negra em uma banca de heteroidentificação. Exatamente por isso, diante de um indeferimento ao uso de vaga de cota racial, é oferecida ao candidato a possibilidade de heteroidentificação em uma segunda banca (chamada de recursal), que emitirá o parecer final a ser considerado no pleito.
A Banca de Heteroidentificação foi julgada, em 2012, pelo Supremo Tribunal Federal, sendo considerada legítima para assegurar que se atinja o objetivo da ação afirmativa de incluir pessoas negras no ensino superior. As bancas são compostas por cinco pessoas, cuja diversidade de cor e gênero busca representar a diversidade da própria sociedade local. Essa composição toma como referência as normativas de concursos públicos do Ministério do Planejamento (Portaria Normativa n. 4, de 6 de abril de 2018), uma vez que não existe normativa própria para processos seletivos de ingresso de estudantes ao ensino superior. Todos os membros das bancas também participam anteriormente de oficina sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.
Diante do exposto, a UFPA reitera seu compromisso com o combate à discriminação das pessoas negras, que resultou na exclusão sistemática dessa parcela da população do acesso a bens e direitos. A cota para pessoas negras visa contribuir para corrigir essa desigualdade, aumentando a representatividade desse grupo no seu corpo de estudantes, possibilitando a presença das pessoas negras em todos os espaços da nossa sociedade.
Ficamos à disposição para outras informações que necessitarem.”
Fonte: G1