100 dias de Lula: governo tem altos e baixos na economia, pressionado por soluções para a crise

Economia

Envio de um novo arcabouço fiscal e avanço em políticas públicas em três meses são vistos por especialistas como pontos positivos; por outro lado, clima tensionado com o Banco Central e declarações atrapalhadas prejudicaram percepção de investidores e expectativa de inflação.

Tópico primordial desde a campanha eleitoral, a economia teve altos e baixos nos 100 primeiros dias do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Por um lado, o petista acumulou vitórias importantes, como a retomada de programas sociais que marcaram sua passagem anterior pela Presidência. Por outro, algumas “caneladas” criaram ainda mais desconfiança sobre os planos do governo para afastar de vez a crise que tomou conta da economia durante a pandemia de Covid.
Como mostrou o g1 em janeiro, o governo Lula assumiu o cargo sem a tradicional “lua de mel” com o eleitorado. O clima era de cobrança intensa pelas respostas da nova gestão petista para o ambiente econômico depois de um aumento expressivo de gastos em ano eleitoral.
Ao fim dos 100 dias, economistas e cientistas políticos ouvidos pelo g1 reconhecem avanços importantes na agenda de políticas públicas: é o caso do aumento do salário mínimo e do valor repassado pelo programa Bolsa Família, e da retomada do Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos.
Outro ponto positivo: a proposta de criação de um arcabouço fiscal que, apesar de algumas dúvidas que restam sobre sua efetividade, tem no horizonte o combate ao descontrole de dívida pública. Há, claro, quem seja mais cético com o mecanismo, mas a iniciativa foi relativamente bem aceita pelo mercado financeiro.

Exemplo claro é o tom elogioso do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que disse que a visão do projeto era “super positiva”. “Eu acho que o que foi anunciado até agora elimina um risco de cauda, para aqueles que achavam que a dívida poderia ter uma trajetória mais explosiva”, disse.
Na outra ponta, as críticas de Lula ao BC, ataques ao mercado financeiro e medidas vistas como “dogmáticas” — como a redução de juros do consignado do INSS, que acabou resultando na suspensão temporária da linha pelos principais bancos do país — ainda têm gerado ruídos e dificultado uma maior aceitação do governo.
Uma pesquisa do instituto Datafolha divulgada na semana passada mostrou uma diminuição do otimismo do brasileiro com a economia. Eram 49% os entrevistados que avaliavam que a situação econômica do país vai melhorar nos próximos meses. Em outubro, na véspera do segundo turno da eleição presidencial, o índice era de 62%.
Primeiro teste
O próprio Roberto Campos Neto, ao comentar o arcabouço fiscal, mostrou receio sobre o que pode ser aprovado ou desidratado na proposta.
Apesar de ter demonstrado capacidade de articulação com o Congresso Nacional durante a tramitação da PEC da Transição, o arcabouço é considerado o primeiro grande teste do “Lula 3”.

“É um governo que está bem posicionado, mas que ainda não foi testado. Talvez o arcabouço seja o primeiro teste, mas só com a primeira votação no Congresso é que saberemos o número efetivo do apoio que Lula terá”, afirma o analista político da LCA Consultores, Ricardo Ribeiro.
Analistas lembram novamente que, desta vez, o presidente encontra bancadas formadas por um perfil bem mais conservador do que em seus mandatos anteriores. Mas a questão vai além.
Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas na Eurasia Group, afirma que a principal diferença está no ambiente político do Lula 3, de um país dividido e com desencanto enorme com o sistema politico.
“Essencialmente, Lula foi eleito após o choque inflacionário, que diminuiu em 6% a renda da população brasileira depois a Covid-19. Mas ele entra sem a mesma força que em outros mandatos. É algo que acontece na América Latina inteira”, afirma.
Além do descontentamento da opinião pública e a composição do Congresso, Garman lembra que os congressistas também têm hoje mais controle do orçamento público — o que se traduz em mais poder de barganha. Ainda assim, o analista não vê dificuldades na agenda do governo.
A única proposta que configura Emenda Constitucional, e necessidade de três quintos dos votos no Congresso, é a reforma tributária. O texto, contudo, precisa aparar arestas com alguns setores, como o de serviços.

Garman acredita, então, que o governo consiga votos na oposição. O restante dos planos são propostas de lei complementar, e dependem apenas maioria de votos.
“Acredito que a agenda inicial seja aprovada com facilidade, mas o governo vai ter dificuldades maiores nas tentativas de aumentar arrecadação. Aí, sim, o Congresso vai ter mais resistência em medidas de aumento de impostos”, diz.
Nos próximos dias, a equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), enviará aos deputados e senadores o texto detalhado do arcabouço. Dali em diante, começa uma batalha para manter seus pilares, como a meta de superávit primário e a limitação das despesas públicas a 70% das receitas.
A leitura de analistas e economistas foi que apesar de as novas regras serem, possivelmente, os primeiros passos rumo a uma redução das taxas de juros, há desafios à frente.
“As novas regras saíram, mas esse não é um ponto que está 100% superado. Ainda não ficou claro como o governo vai cuidar do aumento de arrecadação e como ele pretende alcançar as metas de resultado primário”, diz Frederico Nobre, líder da área de análise da Warren.
Segundo Haddad, o governo deve divulgar logo no início da semana um plano de ações de aumento de receitas e ações positivas, incluindo um pacote de investimentos. Ele havia adiantado que seria necessário aumentar a arrecadação em cerca de R$ 150 bilhões para cumprir as metas do arcabouço.

Para Fernando Rocha, economista-chefe da JGP, o mercado deve continuar com uma visão positiva do arcabouço a depender das garantias de arrecadação dadas pelo governo e, claro, pelo bom andamento do projeto no Congresso.
“Fato é que o mercado estava preocupado com uma insolvência fiscal: uma dívida/PIB crescendo indefinidamente. No momento que ele coloca esse arcabouço, sinaliza que não vai ter insolvência fiscal e você começa a ver uma compressão dos prêmios de risco”, afirma.
“Existe o ideal e o possível. O plano ideal é que tivesse reformas, que pudesse diminuir o tamanho dos gastos, não ter que subir carga tributária. Mas o governo foi eleito com uma proposta diferente”, diz Rocha, da JGP.
Momentos ruins
Para Fernando Rocha, da JGP, o arcabouço serviu de reversão para um começo negativo de governo na economia. São duas situações específicas que o analista enxerga como um início com o pé esquerdo.
O primeiro foi a PEC da Transição, que veio com um patamar de gastos acima do esperado pelo mercado.
Já se discutir um aumento de despesas na casa de R$ 100 bilhões que viriam das medidas tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), em tentativa de garantir a reeleição. No fim, a PEC passou com cerca de R$ 170 bilhões de impulso para garantir a recomposição de orçamento em várias áreas do governo.

O segundo momento crítico foi a discussão atabalhoada sobre meta de inflação. Rocha lembra que a surpresa com uma alteração das metas impactou a expectativa de inflação e fez subir a curva de juros longos do país.
“Isso torna difícil o trabalho do BC para desinflacionar, porque a expectativa de inflação faz o formador de preços — como o pequeno empresário, o cabeleireiro, o médico — reajustar seu preço acima da meta”, diz.
Por fim, ganharam atenção as críticas feitas pelo governo Lula ao BC também acabaram se traduzindo em pontos que marcaram esses 100 primeiros dias de mandato.
Apesar de ter sido visto com bons olhos pela população – 80% afirmaram que Lula age bem em pressionar o BC pela redução dos juros, segundo o Datafolha – o tema ainda traz ressalvas entre especialistas.
Para Ribeiro da LCA Consultores, mesmo que a pressão feita pelo presidente tenha conseguido colocar no debate questões sobre quando e quanto a taxa básica de juros (Selic) será cortada, as críticas foram “exacerbadas”.
“Isso acaba criando uma espécie de resistência corporativa no Banco Central. E como não está no horizonte a possibilidade de mudar a lei de autonomia da autarquia ou retirar o Roberto Campos Neto da presidência do BC, é uma estratégia com efeito duvidoso”, afirma.

Na semana passada, Lula voltou a criticar os juros altos do país e disse que se a meta de inflação está errada “muda-se a meta”. A meta de inflação, de 3,25% para 2023, podendo oscilar 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo, é o parâmetro usado pelo BC para definir a Selic, atualmente em 13,75% ao ano.
De acordo com Nobre, da Warren, Campos Neto acabou sendo um “bode expiatório” de Lula, que buscava dar uma explicação para o nível elevado da Selic.
“Nesse momento, o governo quer achar um culpado. E eu não acho que o BC esteja acima da sociedade, do governo ou do que quer que seja. A autarquia é, sim, passível de críticas, mas o que o BC está fazendo agora é simplesmente esperar o momento adequado para que a alta de juros seja sentida na economia real, o que é papel dos formuladores de política monetária”, diz.
Já Rocha, da JGP, entende que os juros estão altos, mas a aprovação do arcabouço deve fazer a função de baixar o prêmio de risco e dar conforto ao BC para baixar os juros.
“Essa distorção ocorria por insegurança em relação aos rumos da dívida pública. O ideal é que o BC persista um pouco mais, para levar o núcleo da inflação para baixo. É um processo penoso, mas que vai trazer inflação baixa por mais tempo”, diz.

Fonte: G1