Como Paulo Freire virou pivô de disputa com queima de livros didáticos no México

Internacional

Figura central na chamada guerra cultural entre a esquerda e a direita no Brasil nos últimos anos, o educador Paulo Freire, um dos pedagogos brasileiros mais estudados no mundo, acaba de virar pivô em uma disputa política no México.

Comum em países como os Estados Unidos, a escalada de tensão em torno de símbolos culturais, morais e sexuais e de doutrinas educacionais levou a fogueiras de livros didáticos, à suspensão da distribuição do material escolar a milhões de alunos e a ameaças de morte contra um dos mais altos funcionários do governo federal de Andrés Manuel Lopez Obrador.

O presidente mexicano, conhecido pelas iniciais AMLO, é do partido esquerdista Morena (Movimento Regeneração Nacional), que tenta vencer as eleições presidenciais mexicanas de 2024.

Nas últimas semanas, os livros didáticos das escolas públicas primárias e secundárias do ano letivo 2023/2024 começaram a ser distribuídos ao redor do México. Seu conteúdo — com erros de informação pontuais sobre astronomia e matemática e menções à “teoria da revolução” de Freire — fez explodir uma tensão que se avolumava há mais de dois anos no cenário político do país.

Sem conteúdo ‘neoliberal’
Em agosto de 2021, AMLO anunciou que faria uma revisão dos conteúdos educativos mexicanos para retirar abordagens “neoliberais”.

Segundo o presidente mexicano, as alterações eram necessárias para incluir na “educação uma dimensão social, humanística e científica, que havia sido perdida porque, durante o período neoliberal, não queriam que se conhecesse nossa história”.

As medidas seriam necessárias para que o governo pudesse entregar sua prometida “Quarta Transformação”, slogan da campanha de AMLO que prometia um México menos desigual, com melhores e mais bem acessados serviços públicos, fim de privilégios a autoridades e foco no combate à corrupção. Seria, “pacificamente”, uma quarta quebra histórica na ordem social do país. As três anteriores, segundo esse discurso, foram a independência, a reforma (que retirou o poder da Igreja Católica) e a revolução mexicana.

Para a missão educacional, AMLO escalou o filólogo mexicano Marx Arriaga Navarro, empossado como diretor-geral de Materiais Educativos da Secretaria de Educação Pública, responsável pela distribuição de mais de 50 milhões de livros didáticos.

Para auxiliá-lo, Navarro convidou Sady Arturo Loaiza Escalona, ex-diretor da Biblioteca Nacional da Venezuela, entre outros postos ocupados durante o regime chavista venezuelano.

Segundo o governo, o trabalho na área educacional foi feito com consultas públicas. Para os oposicionistas, no entanto, não houve qualquer transparência e a reformulação foi feita no “escurinho”.

Não demorou para que a oposição e entidades conservadoras da sociedade civil acusassem o governo AMLO de promover doutrinamento ideológico e panfletarismo comunista com o material didático.

Antes mesmo que o conteúdo fosse público, a Unión Nacional de Padres de Familia obteve na Justiça Federal, em maio, uma ordem para que a impressão do material fosse interrompida e, em seu lugar, fossem reutilizados os livros didáticos do ano anterior.

Dizendo ter consultado dezenas de universidades públicas e quase dois mil professores e cumprido com todas exigências legais, o governo AMLO não atendeu à ordem judicial e seguiu com o processo de distribuição escolar dos livros.

profunda, dor na alma”, comentou, para, na sequência, enfileirar nomes de políticos, jornalistas e de partidos mexicanos como o PRI, o PAN e o PRD, todos de oposição ao governo AMLO. “Conquistaram sua perversão”, acusa Navarro.

Em outra postagem, o diretor de materiais educativos do México publica uma suposta ameaça de morte: “só responda como prefere morrer, se com um tiro de um franco atirador ou asfixiado em sua casa, se não retirar os livros de circulação antes do fim de setembro”.

Ameaças de morte
A BBC News Brasil questionou Marx Arriaga Navarro sobre as críticas a respeito da carga ideológica dos livros didáticos.

“Tudo na vida está carregado de ideologia”, afirmou Navarro, para, na sequência, reafirmar que os livros “não foram concebidos para promover qualquer consciência social específica, ou para promover conceitos com caráter proselitista”.

Segundo ele, “a Nova Escola Mexicana é mais uma proposta dentro das discussões e contribuições filosóficas do sul global”, que conta com Paulo Freire, entre outros nomes, como “referência” para “a formação de uma cidadania mexicana que assume, como principal desafio, as implicações do bem-estar comunitário em que o indivíduo não pode estar bem se o resto do comunidade está em péssimas condições”.

Navarro afirma ainda, sem citar exemplos, que muitos dos erros atribuídos ao material didático são “calúnias” espalhadas por redes sociais, mas reconhece que há, sim, incorreções, que chama de “áreas de oportunidades”.

“Como em qualquer processo editorial, existem áreas de oportunidade; nesses livros, praticamente, tudo se deve a questões de estilo, não a questões de conteúdo”, diz o diretor, cuja equipe já estaria trabalhando na produção de erratas.

Navarro atribui a resistência aos novos materiais didáticos à perda de controle por poucos atores econômicos do mercado editorial mexicano, à sua forte representação política na direita e à resistência política ao projeto de AMLO.

“O que vemos é o esforço de uma classe dominante, hegemônica, para manter os marginalizados do sistema submissos, subjugados”.

Segundo ele, o novo material derruba “a ideia de uma cidadania obediente, que tem medo de certos fantasmas que permitiram o assassinato de milhares de mexicanos sob a justificativa de: comunismo, sindicalismo, bons costumes, homossexualidade ou guerrilha”.

Questionado sobre se havia levado à polícia e à Justiça as ameaças de morte que diz sofrer, Navarro afirmou se recusar a levá-las a sério. “Sigo andando de transporte público sem qualquer outra proteção além dos meus princípios”.

O México tem eleições previstas para junho de 2024.

A coligação de oposição ao governo nomeou recentemente como candidata uma senadora com raízes indígenas, Xóchitl Gálvez.

No partido Morena, de Andrés Manuel López Obrador, a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, é considerada a favorita.