Em 11 de setembro de 2015, um ônibus com estudantes da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, seguiu em direção a uma fazenda no interior do Estado. Os jovens passariam uma semana na área rural.
Entre os alunos estava Victoria Mafra Natalini, de 17 anos, descrita por familiares como estudiosa e apaixonada por arte. Na viagem escolar, a jovem contava os dias para um momento especial: quando voltasse para casa, ela iria a Porto Alegre (RS) para assistir ao show da sua banda preferida, o Queen.
Mas aquela atividade escolar foi a última viagem da vida dela. A jovem nunca assistiu à apresentação musical que tanto esperava.
Victoria foi encontrada morta dias depois de chegar à fazenda. O caso virou uma investigação policial que foi arquivada. É um mistério que dura quase uma década.
A família da jovem cobra uma resposta e até contratou especialistas para uma investigação particular, o que foi fundamental para descobrir que ela não morreu por causas naturais. “Estou fazendo o papel de polícia e do Estado há oito anos”, afirma o pai de Victoria, o engenheiro mecânico João Carlos Natalini, de 58 anos.
A viagem escolar que terminou em morte
A excursão que hoje é lembrada pela morte de Victoria tinha o objetivo de levar 34 alunos da escola particular para passar alguns dias na Fazenda Pereiras, em Itatiba, no interior de São Paulo.
Era um passeio escolar tradicional na unidade de ensino. Os alunos, junto com dois professores e três técnicos de topografia, foram à propriedade rural para fazer estudos práticos sobre matemática e topografia. Eles fariam um mapeamento detalhado da propriedade rural.
A escola não permitia que os alunos levassem celular à fazenda. “Eles não poderiam se comunicar com os pais. Ficamos confiando que a escola exerceria o seu dever”, diz João à BBC News Brasil.
Tudo parecia bem até o quinto dia da excursão, quando os alunos foram divididos em grupos para mapear diferentes áreas da fazenda.
Por volta das 14h30 daquele dia, Victoria avisou aos colegas de grupo que iria ao banheiro. Ela seguiu por uma trilha de terra em direção à sede do local, a cerca de 500 metros do ponto em que estava.
Essa foi a última vez em que a jovem foi vista, segundo a investigação policial. Cerca de duas horas depois, os colegas de grupo estranharam que ela não havia retornado e procuraram os professores, para perguntar se eles sabiam o paradeiro da adolescente.
E então teve início uma busca pela jovem na propriedade rural. “Os professores colocaram até os próprios alunos para procurarem a minha filha na mata. Só por volta das 18h que a cozinheira da fazenda tomou a iniciativa de chamar a Defesa Civil”, conta o pai da garota, com base nos relatos que ouviu na época.
“Eu só fui comunicado sobre o desaparecimento da minha filha às 20h e só consegui chegar lá por volta das 23h”, diz João..
Após o registro do desaparecimento, a polícia foi à fazenda. Por volta das 23h, as buscas foram suspensas e uma das possibilidades era de que a jovem tivesse sido sequestrada.
As buscas foram retomadas na manhã seguinte. Por volta das 8h, o helicóptero da Polícia Militar de São Paulo encontrou o corpo de Victoria no entorno da fazenda.
“Foi um baque muito grande quando me contaram que haviam encontrado o corpo dela. Eu estava em pé e tive que tomar fôlego para me reerguer. Foi tudo muito difícil. Precisei avisar aos familiares e ainda reconhecer o corpo da minha filha”, conta João. Ele define a descoberta sobre a morte da filha como o pior dia de sua vida.
Os desdobramentos
Não havia lesão aparente ou qualquer outro indício evidente de que Victoria havia sido vítima de um crime. No começo, a morte dela foi considerada como suspeita, mas a principal possibilidade cogitada era de que tivesse acontecido por causas naturais.
Após viver os primeiros dias de luto intenso, João começou a questionar o que poderia ter acontecido com a filha. Na época, chegaram a noticiar que a garota tinha histórico de convulsões – o que foi negado pela família.
João conta que a filha era saudável, se alimentava bem e praticava esportes. Em razão disso, ele achava pouco provável que Victoria tivesse morrido por problemas de saúde.
“Já decorrido alguns dias ou semanas, a gente começou a pensar como havia coisa esquisita nisso tudo. O corpo dela foi encontrado em uma direção oposta à sede da fazenda, para onde ela queria ir quando desapareceu, e isso chamou a atenção. Pedimos insistentemente para a polícia local investigar, mas se negavam porque diziam que havia sido por causas naturais”, afirma João.
Pouco após a morte da jovem, um laudo emitido pelo Instituto Médico Legal (IML) de Jundiaí (SP) apontou “causa indeterminada, sugestiva de morte natural” e descartou que ela tenha sido vítima de qualquer tipo de violência.
Segundo os exames, Victoria não havia usado drogas nem ingerido bebida alcoólica.
O laudo preocupou o pai da jovem, que acredita que depois disso a investigação do caso não recebeu a devida atenção das autoridades policiais.
Para ele, não havia chance de a filha ter morrido de causa natural. Um fato que havia levantado desconfiança dele era a forma como o corpo dela foi encontrado: de bruços e com os braços entrelaçados. Para ele, isso representava que provavelmente alguém havia mexido no corpo.
João decidiu investigar o caso por conta própria. Ele contratou peritos particulares que apontaram que apesar da falta de lesão aparente e de não ter ocorrido abuso sexual, a estudante foi assassinada e teve o corpo carregado até o local em que foi encontrada morta.
“Esse laudo apontou uma série de incongruências do IML de Jundiaí, em razão da não investigação. Esses peritos que contratei pegaram todo o material a respeito da minha filha, avaliaram e desenharam toda a dinâmica, apontando que não tinha sido uma morte natural”, conta João.
O pai da jovem apresentou o laudo particular à polícia. Diante disso, a apuração do caso foi reavaliada e encaminhada para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo.
No começo de 2016, o DHPP pediu um novo laudo ao Centro de Perícias da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Essa nova análise confirmou que a aluna morreu por “asfixia mecânica, na modalidade de sufocação direta”.
O novo resultado apontou que a jovem pode ter sido assassinada. Isso porque esse tipo de sufocação direta, apontam especialistas, costuma ser feita pelas mãos, o que pode indicar que uma pessoa atacou a jovem.
O pai acredita que Victoria foi morta em uma emboscada enquanto seguia para a sede da fazenda.
“A pessoa tentou atacá-la, ela deve ter tentado se defender e a pessoa, com medo de que ela gritasse e denunciasse, acabou tentando calá-la, por isso tapou a boca e o nariz dela, o que acabou asfixiando a minha filha”, diz João.
Em nota à reportagem, a Fazenda Pereiras, onde ocorreu a excursão, afirma que colaborou com a investigação e que permitiu a circulação de investigadores e peritos “que ouviram todos do staff que quiseram e quantas vezes consideraram necessárias, exibir qualquer documento que fosse solicitado.”
“O trabalho policial sempre foi realizado com máxima liberdade e sempre seguimos à risca as determinações dos investigadores”, acrescenta o comunicado dos responsáveis pela fazenda.
Críticas à investigação
Mesmo no DHPP, o pai de Victoria avalia que a investigação avançou muito pouco.
“Deixaram de fazer várias coisas, deixaram de colocar uma série de depoimentos no inquérito e tudo mais. Ao meu ver, foi uma investigação ruim e não foi bem conduzida”, declara João.
O pai da garota afirma que um dos principais problemas foi o fato de que muitas provas foram deixadas de lado porque a apuração inicial, nos primeiros meses após o crime, seguiu a linha de que a jovem morreu de forma natural.
Em nota à BBC News Brasil, a Polícia Civil de São Paulo nega que tenha havido falhas na investigação do caso e diz que “adotou todas as medidas de polícia judiciária cabíveis para esclarecer o caso.”
Sem avanço ou qualquer suspeito, o inquérito foi encaminhado à Justiça e arquivado há cerca de um mês. A investigação só poderá ser reaberta se houver novas informações sobre o caso.
Oito anos sem resposta
Enquanto a investigação oficial segue arquivada, João assegura que não descansará até a prisão da pessoa que matou a sua filha.
Nos últimos anos, ele teve algumas pequenas vitórias. Na área cível, a Justiça determinou que a escola pagasse uma indenização. No entanto, a unidade de ensino recorreu da decisão e pediu redução do valor. O caso segue em tramitação.
Já no mês passado, a Justiça de São Paulo aceitou uma denúncia do Ministério Público do Estado (MPE) e funcionários da Escola Waldorf Rudolf Steiner se tornaram réus por abandono de incapaz.
Na denúncia, o MPE apontou que os dois professores que estavam na excursão com Victoria “omitiram-se no seu dever legal, abandonando-a, deixando-a ir sozinha até a sede da fazenda, percurso longo e ermo.”
Além dos dois, também se tornaram réus o gestor-executivo da escola, uma gestora pedagógica e a coordenadora do ensino médio.
O MPE apontou que eles “concordaram com a “excursão com reduzido número de monitores e professores para monitorar e acompanhar os alunos de forma constante durante os dias na fazenda”. O processo está em fase inicial.
A reportagem procurou a escola, que disse, em nota, que adotou “todos os procedimentos de segurança necessários durante a viagem de estudo do meio e que, após a constatação da ausência de Victoria, as autoridades competentes foram contatadas.”
“Esclarece, ainda, que em todas as atividades pedagógicas desenvolvidas – sejam na escola ou em ambiente externo – disponibiliza equipes de profissionais capacitados para acompanhamento de seus alunos”, acrescenta o comunicado da unidade de ensino.
Na nota enviada, a escola não menciona especificamente sobre as questões judiciais do caso. Porém, lamenta a morte da jovem e afirma que “segue comprometida em contribuir com as autoridades e a justiça desde o primeiro dia das investigações.”
A reportagem procurou a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para saber se houve alguma punição do Estado à unidade de ensino. Em nota, a pasta afirma que chegou a apurar o funcionamento da escola na época, mas não constatou irregularidades no local.
Para João, o caso da morte da filha é uma sequência de impunidades. Mas ele avalia que a recente implicação jurídica aos gestores e professores da escola traz “certo alívio”. Porém, ele reclama da demora. “Foram oito anos até que eles se tornassem réus”, pontua.
Ele segue com iniciativas para buscar respostas sobre a morte da filha. Há três anos, João criou um abaixo-assinado online para cobrar que o caso seja solucionado. Ele já conseguiu quase 58 mil assinaturas.
Nas redes sociais, João mantém páginas para divulgar novidades do caso da filha. No Instagram, ele tem perfil “Victoria Natalini vive”, em que compartilha as notícias sobre o crime.
João ainda continua com uma investigação particular para tentar descobrir novidades e apresentar à polícia. Recentemente, anunciou uma recompensa de R$ 50 mil para quem fornecer informações.
“Precisamos de qualquer informação que leve ao autor do crime. Não é possível que nenhuma pessoa tenha ouvido ou não saiba de qualquer coisa. Estou disposto a pagar e manter o sigilo dessa pessoa que nos passar uma pista que pode levar ao assassino”, conta.
Em meio à incansável busca por justiça, João viveu anos de intenso desgaste emocional. Mas ele afirma que caso fosse preciso, faria tudo de novo. “É a minha filha, não me arrependo”, declara.
Para ele, descobrir o que aconteceu com a adolescente é uma forma de honrar a memória de Victoria.