Após as cenas de violência no Rio de Janeiro na segunda-feira (23/10), quando criminosos queimaram 35 ônibus em represália à morte de um miliciano, a Polícia Civil disse que já não diferencia a ação do tráfico de drogas e das milícias, que hoje copiam os “modelos de negócios” um do outro.
No entanto, segundo o pesquisador Bruno Paes Manso, ainda existem diferenças fundamentais entre o tráfico de drogas e as milícias – que hoje controlam 60% do território dominado pelo crime organizado no Rio de Janeiro.
A principal dessas diferenças, diz ele, é que as milícias têm uma proximidade com o poder que as favorece.
“A influência das milícias no governo e a capacidade dos milicianos em garantir votos para parlamentares e influenciar a política do Rio e as instituições é muito maior”, diz Paes Manso, que é pesquisador do Núcleo de Violência da USP (NEV) e autor do livro República das Milícias (Todavia, 2020).
Em entrevista à BBC News Brasil, Paes Manso explica a escalada recente da violência na cidade, que também levou ao episódio em que três médicos de São Paulo foram assassinados no Rio.
O pesquisador também fala sobre seu livro recém-publicado A Fé e o Fuzil (Todavia, 2023), em que discute crime e religião no Brasil e explica o fenômeno dos traficantes que se declaram evangélicos no Rio de Janeiro.
O protestantismo inicialmente cresceu em oposição à desordem do crime na capital carioca, explica Paes Manso. Mas, nos últimos anos, segundo o pesquisador, vertentes religiosas passaram a ser usadas para legitimar autoridade de traficantes.
No livro, Paes Manso conta as histórias de diversos ex-criminosos que mudaram de vida ao se converterem. E fala sobre um “constrangimento” gerado pelo novo fenômeno de traficantes que fazem uso ostensivo da religião e não deixam o crime.
Leia os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.
para mim tudo parecia muito mágico. Eu gostava das histórias. Mas era um tema que estava muito vinculado a crenças individuais, privadas, que não eram de interesse público.
Isso começou a mudar quando eu escrevi o livro A República das Milícias. Conheci um traficante que perseguia religiões de matrizes africanas, que tinha Jesus Cristo tatuado no braço, era parceiro de um miliciano próximo do Adriano da Nóbrega, próximo à família Bolsonaro (Nóbrega tinha parentes alocados no gabinete de Flávio Bolsonaro).
Depois eu conheci a história do traficante que montou um complexo de favelas que ele denominou como Complexo de Israel. Por que aquilo era diferente? Porque eles usavam a religião para legitimar o poder e autoridade deles, era com objetivos públicos e políticos: para promover obediência, legitimar autoridade em um lugar como o Rio de Janeiro onde você tem o caos de vários grupos em confronto.
Onde todo mundo é vilão, eles estavam tentando dar um ar de mocinho (à sua atuação) a partir de um discurso religioso. Mas o discurso, ao meio tempo, era real – ele não estava inventando nada, ele realmente acreditava naquilo.
E aí veio também o bolsonarismo, que acaba sendo meio transversal a esse debate. Veio esse discurso da guerra espiritual, da luta do bem contra o mal invadindo a esfera pública. Aí era o momento de enfrentar esse assunto, havia um interesse público, uma questão política a ser explorada.
estigmatizá-los ou para ou para defini-los, ou para parar tirar sarro, mas para explicar que é um termo nativo, criado naquele ambiente que você está pesquisando.
BBC News Brasil – Você entrou em contato com líderes que dizem que esses traficantes não são verdadeiros evangélicos?
Paes Manso – Claro, muitos não vão enxergar essas pessoas como reais evangélicos
Isso sem falar em pastores que pregam o ódio, que demonizam uma outra religião. Esse é um verdadeiro evangélico? Esse tipo de postura ou de crítica sempre vai existir diante da horizontalidade das interpretações entre os protestantes.
É óbvio que um traficante que se diz evangélico é algo chocante e que bate de frente com diversos dogmas e leituras bíblicas, mas tem muitas outras coisas que também são chocantes e que também são alvos de contestação entre os próprios evangélicos.
A gente tem que mostrar porque a gente está relatando isso: para aprofundar a discussão e mostrar uma realidade que muitos preferem fingir que não existe.
pentecostal gospel fazendo parte de uma cultura geral, inclusive dos criminosos que vão falar: “olha, beleza, eu ainda não me converti, mas eu respeito o pastor, eu sou justo no crime, eu corro do lado certo de uma vida errada”.
BBC News Brasil – No livro você compara o PCC a uma agência reguladora do crime e diz que, no caso do Rio, as facções seriam como empresas competindo. E você fala que no início o PCC aumentou a violência para estabelecer a dominância e só depois, com as regras, o homicídio caiu. É isso que está acontecendo na Bahia neste momento, essa disputa em um lugar onde não existe uma dominância clara?
Paes Manso – Sim, na Bahia e em vários estados. São Paulo é o Estado que conseguiu, a partir do PCC, criar essas regras para a cena do crime e virar essa agência reguladora. E isso o PCC conseguiu principalmente a partir da expansão dos presídios e do controle dos presídios que eles conseguiram fazer nos anos 1990. A partir desse momento o PCC começou a dar passos mais largos e chegou às fronteiras da Bolívia, à Colômbia, ao Paraguai.
Ao mesmo tempo o PCC se comunicava com diversos criminosos nos presídios federais. E aí as gangues começaram a aparecer em todo o Brasil. De repente, são quase 60 gangues no Brasil inteiro, em todos os estados. Só que nesses estados o PCC enfrentou resistência.
Podia ser resistência local de uma gangue local, mas muitas vezes associada com o Comando Vermelho, que virou uma referência nacional. Então são mercados em disputa. Na Bahia são várias gangues. E em mercados do crime que são competitivos, essas disputas acontecem pela bala.
BBC News Brasil – Como você avalia o plano do governo federal contra a violência após a crise na Bahia?
Paes Manso – O ministro (da Justiça) Flávio Dino abordou o problema, falou corretamente: são quase 60 gangues, é um problema nacional e as gangues se comunicam, enquanto as polícias não se comunicam. Então é preciso trocar informação, é preciso juntar as instituições. Da mesma forma ele falou da relevância do controle das polícias por meio dos ministérios públicos para a redução de homicícios.
Ele falou de usar taxas de crime para medir as metas, para depois eles serem cobrados. Até hoje, ao longo de 30 anos, o governo federal buscou se omitir do problema, buscou fingir que não era com ele. Faz parte da tradição dos presidentes evitar trazer para eles o problema dos governadores.
Então eu acho que tem que ser apontado esse aspecto positivo do governo federal estar compartilhando com os governadores esse compromisso. É um princípio, me parece importante. Mas óbvio que não vão mudar as coisas do dia para noite, porque, de fato depende dos governadores e depende de uma capacidade de articulação política.
BBC News Brasil – Tenho uma pergunta um pouco mais pessoal. Ao longo do livro você conta que é agnóstico e chama de “dom” a capacidade das pessoas religiosas de acreditar. Você tem – na falta de uma palavra melhor – uma certa inveja dessa capacidade das pessoas de acreditarem, da propensão para a fé? Tem vontade de conseguir sentir o que eles descrevem?
Paes Manso – Eu já tive. Realmente, às vezes, parece que a vida fica mais fácil quando você tem respostas. Por que você vai acordar, vai sofrer, vai enfrentar vai lutar. Quando você não acredita em nada, as coisas correm o risco de cair num vazio mesmo. E acaba sendo sempre um imenso desafio você enxergar propósito na sua vida. Eu fico pensando, será que nunca vou acreditar? Sou mais cético… Mas isso também significa que eu nunca seria ateu, por exemplo, porque o ateu ele acredita na não-existência de Deus. E eu eu acredito no mistério. Eu acho que talvez exista alguma coisa que a gente vai ainda encontrar. A gente está em busca de respostas. E talvez essa seja uma das minhas motivações quase espirituais também. Ou talvez seja impossível encontrar qualquer tipo de resposta. Mas existe um mistério, eu respeito muito esse mistério.
Especial da BBC Brasil