Uma atmosfera acolhedora recebe os congregantes que se juntam à Igreja Ortodoxa Russa, escondidos em uma rua lateral despretensiosa, mas esburacada na capital da República Centro-Africana (RCA).
À primeira vista, não há nada de extraordinário na cena de manhã de domingo no país majoritariamente cristão.
Mas Saint-André-Apôtre, a cerca de 20 minutos de carro do centro de Bangui, passou a simbolizar, para alguns, os laços amigáveis entre a Rússia e a RCA.
Vestido com um manto branco até o chão coberto por uma capa dourada, o padre Serguei Voyemawa, que dirige a única Igreja Ortodoxa Russa do país, anda por aí recitando orações e balançando um queimador de incenso enquanto a congregação observa todos os seus movimentos.
As paredes do modesto edifício, de piso de concreto e telhado de alumínio apoiados por vigas de madeira, são adornadas com imagens de santos pintadas à mão, enquanto meia dúzia de velas queimam no altar de madeira.
O padre Voyemawa estava inicialmente hesitante sobre a nossa visita. Ela foi feita alguns meses após a morte do chefe do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, em agosto, que levou ao aumento do escrutínio e preocupação com a crescente influência da Rússia na RCA e, especialmente, com a presença do grupo mercenário.
Quase 200 instrutores militares russos chegaram à RCA depois que o presidente Faustin-Archange Touadéra pediu ajuda para enfrentar grupos rebeldes em 2018.
Mas de acordo com um relatório do grupo de investigação The Sentry, naquela época o grupo Wagner teria se aproveitado de instituições e exército fracos para aperfeiçoar “um plano para a captura do estado”.
“Nós os vimos se concentrar em quatro pilares: político, econômico, de informação, desinformação e propaganda – e os militares”, diz à BBC Nathalia Dukhan, investigadora sênior do The Sentry, que há muitos anos escreve reportagens sobre o país.
“Eles têm se infiltrado e comprometido esses setores para promover seus interesses financeiros e econômicos. Na mineração, o Wagner tem usado o exército nacional para avançar e neutralizar alguns dos grupos armados que controlavam áreas de interesse.”
Dukhan diz que os mercenários estão travando uma “campanha de terror” e são responsáveis por abusos generalizados dos direitos humanos, incluindo execuções extrajudiciais, tortura e estupro.
No início deste ano, o Reino Unido classificou a rede como um grupo terrorista, enquanto os EUA designaram-na como uma “organização criminosa transnacional significativa”.
Mas para muitos centro-africanos, após uma década de guerra civil, a situação é mais complexa.
O padre Voyemawa está ansioso para ressaltar que seu relacionamento com a Rússia é anterior à chegada das forças de Wagner. Ele começou a arrecadar fundos para a igreja em 2010 e a construção começou em 2015.
Sua relutância em discutir política é clara: “Nosso relacionamento com Moscou é religioso”.
Mesmo assim, ele me diz o quanto as coisas mudaram desde que as tropas chegaram: “Nós, os centro-africanos, estamos muito felizes porque os russos estão aqui hoje e na frente da segurança, bem, há paz.
“Há paz na República Centro-Africana. Já faz cinco anos que vivemos em paz, sem guerra.”
Esse sentimento agora foi imortalizado no centro de Bangui, onde se encontra uma estátua de tropas russas protegendo uma mulher e seus filhos.
A seus pés, os buquês deixados em agosto permanecem, com mensagens para “nosso melhor amigo Yevgeny Prigozhin”.
O sentimento pró-Rússia varreu recentemente a África Ocidental e Central, onde oito golpes militares ocorreram desde 2020.
Países como Mali, Níger e Burkina Faso estão rejeitando o antigo poder colonial da França, que eles dizem ter falhado em ajudar adequadamente com os desafios de segurança.
Sentimento ecoado por muitos centro-africanos.
“Precisamos de uma parceria ganha-ganha. É por isso que os russos estão aqui… para que este país também possa se beneficiar do desenvolvimento futuro”, diz Emery Brice Ganzaléis, um empresário da África Central que recentemente se mudou para Bangui após duas décadas vivendo na França.
“Se a Rússia adotar a mesma política que a França na África, não vai funcionar.”
Bambari, a capital da região de Ouaka, cerca de 400 km a nordeste de Bangui, testemunhou algumas das piores violências durante o conflito e mostra como a segurança melhorou lentamente.
A única maneira viável de chegar à cidade é em um voo operado pela ONU, realizado três vezes por semana. Não é aconselhado dirigir e levaria dias porque as estradas estão em ruínas ou são inexistentes.
Trata-se de um lembrete importante dos desafios que o país enfrenta. Assim como a presença maciça da missão da ONU, conhecida por sua sigla, Minusca, com capacetes azuis de marca registrada e veículos brancos visíveis por toda a cidade.
Desde 2014, a Minusca desempenha um papel importante na proteção de civis e no trabalho com as autoridades, mas não está autorizada a tomar partido ou lutar ofensivamente.
Bambari ainda estava sob controle rebelde há dois anos, mas agora é vibrante e movimentada – embora os restos de edifícios queimados ainda permeiem a cidade.
A relativa paz permitiu que Jovanie Renemeya, de 15 anos – e as milhares de crianças que foram recrutadas para grupos armados – sonhassem com um futuro melhor.
Ela foi capturada quando jovem com a avó e levada para trabalhar em um acampamento rebelde.
“Fiquei traumatizada por um longo tempo”, diz Jovanie suavemente, explicando como sofreu um horrível abuso físico e por pouco escapou de ser forçada a se casar com um dos rebeldes.
Depois de um ano, ela e a avó conseguiram escapar quando foram buscar água. De volta aos pais, Jovanie deu início à criação de suínos para juntar dinheiro e sonha em se tornar médica.
Para Victor Bissekoin, o governador de Ouaka, esse retorno à normalidade não teria sido possível sem a intervenção das tropas Wagner.
“Quando pedimos armas e apoio da comunidade internacional, eles nos sancionaram”, diz ele à BBC.
“Em 2021, a Rússia chegou (aqui) e num espaço de dois anos nos ajudou a controlar quase todo o país, além de alguns pequenos bolsos ao longo de algumas fronteiras.
“Quando sua casa queima e você grita: ‘Fogo! Fogo!’ Você não se importa se a água que é dada é doce ou salgada. O que importa é que ela apaga as chamas.”
O presidente Touadéra concorda e defende a presença de Wagner no país.
“Foi dito que 80% do território foi ocupado por grupos armados. Hoje, graças a essa cooperação, esses números se inverteram completamente”, diz ele à BBC durante uma entrevista, concedida após vários dias de negociações, no palácio presidencial em Bangui.
O homem de 66 anos, que venceu de forma polêmica um referendo no início do ano para remover os limites do mandato presidencial, muitas vezes se cerca de forças de Wagner, e é a primeira vez que vemos os mercenários de perto.
Vestido com fardas militares e rostos cobertos por balaclavas, as tropas entram e saem do palácio.
Durante a entrevista, o presidente admite que ainda há desafios pela frente: “Estamos treinando nossas forças de defesa para que virem forças profissionais, prontas para serem usadas para dar segurança à população”.
Quando confrontado com as alegações de que os mercenários Wagner cometeram graves abusos de direitos humanos, incluindo tortura, estupro e execuções extrajudiciais, ele diz que um comitê de investigação foi criado para verificar as acusações.
Os críticos não estão convencidos.
“É muito perigoso porque (o Grupo Wagner) está no campo econômico, no campo da segurança, no campo político e agora está liderando o país”, diz o ex-primeiro-ministro Martin Ziguele à BBC.
Ele inicialmente apoiou o pedido de ajuda russa, mas ficou decepcionado quando eles enviaram mercenários do Wagner, um “grupo criminoso”.
“Eles são totalmente livres para fazer o que querem, ir onde quiserem e decidir o que querem”, diz ele.
O presidente Touadéra se recusa a dar uma data para a eventual retirada de Wagner, enfatizando a necessidade de, primeiro, estabelecer a paz.
Dukhan afirma que tornar o país dependente das forças faz parte da estratégia de infiltração de Wagner.
Pensava-se que o poder de Wagner na África diminuiria após o motim fracassado de Prigozhin contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e depois de sua morte. Mas o grupo não foi dissolvido e seus combatentes ainda não foram totalmente absorvidos pelo exército russo.
“Eles estão se reorganizando, redistribuindo seus homens e seus equipamentos”, diz Dukhan. “No começo, alguns interpretaram isso como uma partida, mas não foi. Foi simplesmente uma reorganização.”
E certamente parece ser procedimento padrão na RCA. Um sinal claro é a presença, no palácio presidencial, de dois homens russos sem máscaras, que são levados às pressas para ver o presidente enquanto esperamos por nossa entrevista.
Um deles é o principal oficial da Wagner, Dmitry Syty, visto ao lado de Prigozhin no último vídeo que ele postou antes de sua morte e há rumores de ser o novo líder.
Outra indicação são os anúncios em toda Bangui da África Ti L’Or, uma nova cerveja russa.
No bar Cave da cidade, é evidente que a campanha de marketing agressiva já ganhou alguns clientes.
“Eu gostaria que houvesse mais (dela) na República Centro-Africana”, diz Max Franklin enquanto bebe sua Africa Ti L’Or, que é considerada mais forte que a cerveja local e de melhor valor, pois é vendida em garrafas maiores.
Contribuiu Efrem Gebreab
Reportagem especial produzida pela BBC Brasil.