Eu, ex-fabricante de armas, afirmo: a guerra é uma loucura

Internacional

Uma conversa com Vito Alfieri Fontana, que se especializou na desativação de minas antipessoais, depois de tê-las produzido com sua empresa. À mídia vaticana, o engenheiro da cidade italiana de Bari afirma o Papa tem razão quando diz que as pessoas querem pão e não armas.

“Manifesto minha proximidade às numerosas vítimas desses dispositivos traiçoeiros que nos lembram a dramática crueldade das guerras e o preço que as populações civis são obrigadas a pagar. Nesse sentido, agradeço a todos aqueles que oferecem sua ajuda, prestando assistência às vítimas e limpando as áreas contaminadas: o seu trabalho é uma resposta concreta ao chamado universal para sermos pacificadores, cuidando de nossos irmãos e irmãs. (Papa Francisco)”

“Pai, então és um assassino?”. A pergunta feita pelo filho de 8 anos ficará para sempre como uma lâmina no coração de Vito Alfieri Fontana. Mesmo hoje, a recordação disso não é fácil para este engenheiro bariense de 72 anos, que viveu duas vidas: a primeira como projetista e produtor de minas antipessoais letais à frente da Tecnovar, uma empresa familiar economicamente bem-sucedida. E depois a segunda, diametralmente oposta: a de responsável pelos desminadores nos Balcãs, um território devastado pelas guerras e infestado por essas armas sutis e mortíferas que são as minas.

Vito contou esta parábola dramática, dolorosa e ao mesmo tempo entrelaçada de coragem e esperança no livro escrito com o jornalista da Famiglia Cristiana, Antonio Sanfrancesco, com o título emblemático “Eu era o homem da guerra”.

Nesta entrevista aos meios de comunicação do Vaticano, o antigo fabricante de armas convertido em agente humanitário também comenta as palavras do Papa Francisco sobre o desarmamento e lança um premente apelo a quem, como ele no passado, produz e vende instrumentos de morte.

Engenheiro, você disse nestes anos – também em seu livro “Eu era o homem da guerra” – que viveu duas vidas. A de produtor de minas e a de desminador, daqueles que tentam neutralizar esses instrumentos de morte. O divisor de águas não chegou de repente, mas amadureceu com o tempo. Antes de tudo graças ao seu filho…

Quando meu filho começou a crescer, ele começou a me fazer perguntas. Quando casualmente se deparou com o fato de eu produzir minas, fabricar armas, ele me perguntou: “Se fabricas armas, então és um assassino…”. São aquelas coisas que te fazem entender a percepção que vem de fora daquilo que você faz. Afinal, é a coisa mais simples de entender: quem fabrica armas, querendo ou não, ajuda a fazer mal aos outros. E meu filho também me disse talvez a coisa mais óbvia: “Pai, talvez outros façam armas, tantas pessoas no mundo, mas por que ru as deve fabricar?”. Estas palavras foram a primeira pedra de tropeço.

Depois, na sua “conversão”, desempenhou um papel também padre Tonino Bello e em particular um jovem ligado ao bispo da Apúlia, presidente da Pax Christi…

Sim, em 1993, quando começou a campanha internacional pela proibição das minas antipessoal, naquele momento recebi um convite para falar vindo do padre Tonino Bello, da Pax Christi, da qual era presidente. Ele havia escrito no convite: “Procuremos encontrar um ponto de discussão. Será possível falar entre os homens de paz e os que fazem a guerra?”. Padre Tonino, que havia organizado este encontro, infelizmente não participou, porque nesse meio tempo faleceu. No entanto, o seu grupo quis manter esta discussão de qualquer maneira e me deparei com, não estou brincando, com duzentas pessoas que me questionaram fortemente. Respondi sem problemas, até que um jovem, voluntário da Pax Christi, me deixou abalado no final da discussão, ao perguntar: “Engenheiro, você pode até ser simpático, mas à noite, quando vai dormir, com o que sonha?” É possível que sonhes com uma bela guerra, é possível que sonhes com uma guerra para vender muitas minas?”.

Sua empresa, a Tecnovar, faturava bilhões de liras. Uma empresa familiar. Sua mudança de vida também encontrou muitos mal-entendidos e dificuldades. Mas você seguiu seu caminho. O que o levou a percorrer um caminho tão difícil?

Quando o prego bate em ti, o prego na tua cabeça, o verme da consciência, como se faz para colocar de novo a caneta na prancheta e planejar algo que pode prejudicar outras pessoas? A esse ponto, não se consegue mais fazer isso. Por que eu devo fazê-lo? Efetivamente, meu filho tinha razão. Claro que isso comporta mal-entendidos, que há o rompimento com uma parte da família, que te encontra, não exatamente com o vazio ao seu redor, mas tu entendes que os outros não querem entender… Porém, se segue em frente.

O que você sentiu nas primeiras vezes que se viu do outro lado? Liderar, com a organização Intersos, a desminagem de áreas infestadas com minas antipessoal – particularmente na ex-Jugoslávia – semelhantes às que a sua empresa tinha produzido até recentemente?

É uma sensação ruim porque uma parte de ti se sente embaixo da terra. É uma sensação estranha, ou seja, tu sentes te perguntando por dentro: “Vistes o aprontaste?”. Os primeiros cinco minutos são assustadores, porque tu não sabes se será capaz de ir contra ri mesmo. Aí, no final, o medo passa… Mas, no começo, é constrangedor. Eu me senti muito mal e era muito severo comigo mesmo.

Você contou que, na sua vida de industrial das armas, participou de feiras e eventos onde conheceu mais ou menos sempre as mesmas pessoas. Eventos onde o dano causado com estas armas não era considerado…

Nessas ocasiões nunca se falou em vidas humanas. Uma mina terrestre é uma boa mina se conseguir perfurar uma placa de metal de 50 cm x 50 cm x 5 mm. Não há menção a homens, não há crianças que sejam consideradas. Não há soldados que depois perdem as pernas ou a vida… perfurar a placa, esse é o objetivo e é nisso que trabalhamos.

O epílogo de seu livro intitula-se “O passado que não passa”. O peso da primeira das duas vidas também se faz sentir na segunda, inevitavelmente… Dois milhões e meio de minas produzidas, algumas milhares desativadas. Um balanço desigual, observa com amargura. Também pela sua consciência…

Sim, se considerarmos apenas uma vida… O meu compromisso agora é também a favor de cerca de 10 mil pessoas em todo o mundo que fizeram o meu último trabalho, o de desminador. Pessoas que se esforçam todos os anos, todos os dias, todas as horas do dia para remover minas. Espero ter contribuído também ao destacar esse problema, ao encorajar essas pessoas que estão fazendo “milagres” nos últimos anos. Não estou falando apenas dos Bálcãs, estou falando da Ásia, da América, da África, com sucessos incríveis. Então, claro que o balanço que faço, como pessoa, é desigual, mas faço parte de um grupo incrível de pessoas que estão fazendo um grande trabalho.

A propósito desta última consideração, você também colaborou com Jody Williams, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, em favor da Campanha Global contra as minas antipessoal, que levou à Convenção de Ottawa. Um acordo citado positivamente pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica “Laudate Deum”. Hoje não parece existir um movimento de base, popular, sobre o desarmamento como ocorrer para outras questões, por exemplo a crise ecológica…

Digamos que a Convenção de Ottawa tinha, em última análise, um inimigo bastante limitado. Os fabricantes de minas eram uma mínima parte e, sinceramente, nem sequer defensáveis… As questões ambientais envolvem muito mais pessoas e, portanto, naturalmente têm muito mais seguidores. Contudo, digo que pelo menos os cristãos devem ter sempre presente – não creio que me engane – que, no Evangelho, os pacificadores, os agentes de paz são o único grupo humano que Jesus define como “filhos de Deus: “Bem-aventurados os os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus”. Devemos sempre lembrar disso, é uma grande responsabilidade. Poderíamos ser apenas um, poderíamos ser 10 mil, mas se estivermos definidos de uma certa forma não podemos retroceder.

A guerra na Ucrânia, a guerra no Médio Oriente e depois muitos outros conflitos esquecidos, da Síria ao Iêmen. O Papa destacou muitas vezes um paradoxo: armamo-nos para nos sentirmos mais seguros, mas as guerras e, consequentemente, a insegurança global estão aumentando. Também o fez ao dirigir-se ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé em 8 de janeiro.. Na sua opinião, este círculo vicioso pode ser quebrado ou devemos resignar-nos a viver nesta situação?

Nunca resignar-se! Infelizmente, porém, 2024 é um ano conturbado: haverá eleições presidenciais nos Estados Unidos. Portanto, todos os acontecimentos internacionais, na minha opinião, girarão em torno dessa situação e haverá uma grande turbulência internacional. É claro que a certa altura os conflitos devem parar, porque as guerras não podem ser infinitas, e nesse momento será necessário intervir. Teremos um ano difícil, depois do qual será necessário arregaçar as mangas e tentar curar as feridas que todos nós, como comunidade humana, infligimos aos nossos irmãos.

O Papa também disse no dia de Natal que as pessoas querem pão, não armas. Madre Teresa fez um apelo semelhante, recebendo o Prêmio Nobel da Paz, em 1979…

Devemos estar cientes de que as armas são detidas por apenas cerca de 1% da população quando há uma guerra. As armas são operadas, usadas ou programadas por muito poucas pessoas em comparação com os danos que causam. O que vi ao entrar nestes palcos de guerra, nestas realidades devastadas, é que as pessoas precisavam – como diz o Papa – de pão, precisavam de trabalho, de reconstruir, e certamente não precisavam de armas! E isso é verdade para 99% das pessoas. Esse fato sempre me impressionou: que poderias reunir antigos ex-inimigos desde que os colocasse para trabalhar, ou seja, lhes desse um emprego, um salário adequado para que pudessem voltar para casa com dignidade. Então eu realmente vi antigas rivalidades morrerem. Ortodoxos, católicos, muçulmanos, mas também muitos ateus trabalharam comigo na minha atividade de desminagem… E não havia problema quando uma pessoa colaborava com outras e levava pão para casa: essa é a perspectiva que a política deveria ter: distribuir pão em vez de armas ! Não pão – digo eu– dado ou roubado, mas pão ganho. Os trabalhos devem ser planejados, a recuperação, as reconstruções… a irrigação e as energias alternativas devem ser planejadas.

“Para dizer ‘não’ à guerra, devemos dizer ‘não’ às armas”, disse o Papa no dia de Natal. “Porque – acrescentou – se o homem, cujo coração está instável e ferido, encontra nas mãos instrumentos de morte, mais cedo ou mais tarde os usará”. O que você acha com base também na sua experiência pessoal?

Gostaria de completar estas palavras do Papa assim: fazer a guerra é como derrubar uma árvore. Fazer a paz é como plantar uma árvore. Para derrubar uma árvore não se precisa de nada, precisas de uma arma! Para fazer a paz é preciso plantar a árvore, é preciso semear, cuidar para vê-la crescer. Portanto, ao sofrimento do momento de guerra segue-se o desconforto, o cansaço e o sofrimento da reconstrução. É uma loucura. O uso de armas é uma loucura! Existem todas as possibilidades de viver cooperativamente, mesmo que penses de forma diferente. Trabalho e dignidade. Resumindo, não sei por que não se quer entender isso.

Você tem hoje 72 anos e viveu intensamente e com uma trajetória de vida incomum. O que diria àqueles que, como você no passado, produzem e vendem armas? Por que ela pararia de fazer isso, como fez?

Eu me dirigiria mais àqueles que sentem que têm fé. Já conversei com muita gente sobre isso. Se você me disser para produzir o motor de um carro ou o motor de um tanque, eu não terei dúvidas… Digo isto: se você tem fé, você deve ser consistente. Principalmente nós que acreditamos na Palavra de Deus, na Bíblia, como podemos nos odiar a ponto de destruir as esperanças dos outros, dos nossos irmãos? Isso é tudo que eu gostaria de dizer.

Especial Vatican News