Os gargalos que dificultam armazenar e distribuir doações para vítimas das chuvas no RS

Brasil

Mais de duas semanas depois de decretar estado de calamidade, Porto Alegre busca desesperadamente soluções para uma consequência imprevista da maior catástrofe de sua história: o desafio de receber, armazenar e distribuir uma torrente incessante de ajuda humanitária proveniente do mundo inteiro.

Os beneficiários são os mais de 157 mil afetados pela grande enchente em um universo de 1,3 milhão de habitantes da capital. Desse total, 13.594 estavam abrigados em refúgios municipais na sexta-feira (17/5).

A prefeitura não tem um levantamento do volume arrecadado em gêneros e itens de vestuário, higiene e limpeza. Desde o início do mês, porém, a cifra pode ser estimada na casa das centenas de milhares de toneladas.

Para as autoridades, não se trata apenas de descarregar e despachar o precioso produto da solidariedade global.

Em uma metrópole ainda parcialmente às escuras e com vias interrompidas, é necessário escoltar veículos de carga, garantir trafegabilidade de vias (o que incluiu até mesmo a demolição de uma passarela na entrada da cidade para garantir a passagem de caminhões), criar centros de armazenamento e logística a partir do zero e prover pessoal para os serviços.

No governo municipal, ninguém assume oficialmente a dificuldade de manejar e acomodar as doações. O assunto é tido como delicado, especialmente depois que o governador Eduardo Leite (PSDB) relacionou na terça-feira (14/5) a remessa de mantimentos de todo o país a dificuldades para o comércio local — e teve de se retratar em razão da repercussão negativa.

No pedido de desculpas, Leite disse que acabou “misturando [o impacto da enchente no comércio] com a questão das doações”. Sob a condição de não serem identificados, integrantes da administração municipal e servidores ouvidos pela BBC News Brasil deixam claro que faltam espaço e pessoal até mesmo para descarregar mantimentos.

As autoridades foram surpreendidas pela quantidade abundante de doações já nas primeiras horas da enchente.

Num sinal da comoção provocada pelo desastre, Porto Alegre tornou-se destino de remessas de gêneros alimentícios, peças de vestuário adulto e infantil (em alguns casos, exigindo limpeza ou conserto), fraldas infantis e geriátricas, cobertores, travesseiros, fardos de água mineral e refrigerante, ração para pets, medicamentos, produtos de higiene e limpeza, utensílios de cozinha. A imensa maioria das remessas ocorreu de forma espontânea.

Contas bancárias criadas pelo governo municipal para receber doações em dinheiro haviam arrecadado milhões via PIX e transferências bancárias.

As moedas de origem eram tão diversas como real, euro, dólar americano e australiano. Com a abundância de gêneros recebidos, a prefeitura pretendia usar as doações em dinheiro na aquisição de bens duráveis para quem perdeu tudo.

A chegada de doações não parou mesmo nos momentos mais críticos. Na manhã de sábado (4/5), havia sete pontos de coleta listados no site da prefeitura. Naquele momento, a Defesa Civil Municipal ainda fazia a triagem de itens.

No final da tarde, o recebimento já tinha sido restringido e concentrado em um único local aberto 24 horas por dia. Quando a cheia completou uma semana, na quinta-feira (9/5), o ponto de referência para doações tinha mudado outras duas vezes de endereço. Àquela altura, havia coleta e distribuição de itens de ajuda em 15 locais cadastrados em toda a cidade.

Uma semana depois, a prefeitura instalou uma Central de Logística no Porto Seco, na zona norte. No local, são realizados os desfiles de escolas de samba no Carnaval. A central ocupa um pavilhão de 1.100 metros quadrados normalmente utilizado como barracão de carros alegóricos das agremiações. O Porto Seco foi também designado para abrigar uma das quatro cidades provisórias que alojarão desabrigados no Estado.

A escolha do Porto Seco foi emergencial. O pavilhão não dispõe de estrutura para armazenagem de carga. Nos próximos dias, uma empresa contratada pela prefeitura instalará prateleiras para pallets (molduras de madeira) capazes de aumentar a capacidade de estocagem do local.

“Recebemos basicamente cestas básicas, colchões, cobertores, roupa de cama, travesseiros e kits de limpeza que vêm da Defesa Civil do Estado”, afirma o secretário municipal de Governança, Cassio Trogildo, responsável pelo local.

Do Centro de Logística, as cargas são transportadas para os centros de distribuição (CDs) espalhados pela capital. Depois das dificuldades dos primeiros dias, a opção foi utilizar a estrutura administrativa das subprefeituras, que representam as 17 microrregiões da capital. Desse total, duas (Arquipélago e Humaitá) estão inundadas e fora de operação.

Uma terceira, a Microrregião Norte, apesar de alagada, teve áreas preservadas pelas águas que são utilizadas pelas autoridades. Atualmente, há CDs em todas as microrregiões, com exceção de Arquipélago e Humaitá.

Questionado se Porto Alegre enfrenta um gargalo no recebimento de doações, Trogildo explica que o esforço do governo é para que os emissários levem em conta, neste momento, as necessidades dos afetados. E quais são essas necessidades?

“Comida é sempre necessário. De preferência, cestas básicas, que fica melhor de fazer a distribuição, né? Claro que a gente não vai refugar quando vem…”, afirma. O Centro de Logística não dispõe de pessoal para realizar triagem de itens ou montagem de cestas básicas.

Parte das dificuldades enfrentadas pelo poder público local estão relacionadas à natureza multifatorial do desastre.

Além de água e lama, a cheia do Guaíba e de seus afluentes afogou a capital em números. A enchente atingiu do bairro Sarandi, na zona norte, onde 26.042 pessoas foram atingidas, até o Lami, no extremo sul, onde os afetados foram 4.398, segundo a prefeitura. Um total de 39.422 edificações foram inundadas. O balanço inclui 45,9 mil empresas, 160 escolas municipais e 22 hospitais com atividades comprometidas em alguma medida.

O Aeroporto Internacional Salgado Filho e o cais do porto estão fora de operação por tempo indeterminado. O trecho final do principal acesso rodoviário à cidade, a via BR-290 e o Viaduto da Conceição, foi rebatizado como Caminho Humanitário: um trecho asfaltado sobre pedras erguido poucos metros acima do nível da água. A passagem, idealizada para carga, foi liberada para veículos de passeio apenas na sexta-feira (17/5), e ainda assim de forma parcial.

Suprimento no final
No início da crise, no dia 4 de maio, em meio ao pânico e quando até mesmo repartições essenciais na resposta à crise, como a Secretaria de Mobilidade Urbana, tiveram de ser evacuadas às pressas, o prefeito Sebastião Melo (MDB) negociou com o Exército o transporte aéreo emergencial, via Base Aérea de Canoas, de tubos de oxigênio para hospitais de Porto Alegre. O suprimento dos estabelecimentos estava no final. “Você tem mil pontas neste momento para serem enfrentadas”, disse o prefeito em entrevista à CNN Brasil.

Diante do impasse, nos primeiros dias da enchente, foi preciso estabelecer um modus operandi entre prefeitura e governo do Estado na capital. Ficou decidido que o segundo, por meio da Defesa Civil do Estado, assumiria o recebimento e a triagem das doações em grande escala.

Os locais escolhidos como depósitos da central de ajuda humanitária foram os galpões da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), no bairro Jardim do Salso. Desocupadas desde que a estatal foi privatizada, em 2021, as instalações têm a vantagem de estar distantes 10 quilômetros da orla e em ponto elevado em relação ao Arroio Dilúvio, que corre nas proximidades. Além disso, ficam próximas do único acesso rodoviário à capital no início da catástrofe, pelo leste.

À prefeitura, coube o controle e monitoramento do trânsito, incluindo a escolta de cargas de ajuda, o transporte da população afetada e a administração de abrigos.

O recrutamento online de voluntários também superou expectativas. A prefeitura chegou a anunciar no dia 5 de maio que o cadastro oficial havia recebido 15 mil inscrições e que novos voluntários não seriam aceitos.

“Agora, nossa prioridade é distribuir os itens recebidos para quem mais precisa. Se necessário, voltaremos a pedir novas contribuições”, conclui o secretário municipal de Gestão e Modernização de Projetos, Rogério Beidacki.