A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris , alcançou nesta sexta-feira (2/8) o número de votos de delegados eleitorais para garantir sua nomeação como candidata do Partido Democrata na eleição presidencial em novembro.
Harris era a única concorrente do partido a disputar os votos de delegados após o presidente Joe Biden abrir mão da candidatura, em julho.
O Partido Democrata anunciou que 3.923 de seus delegados – 99% do total – planejam votar em Harris.
Se ela derrotar Donald Trump, o candidato republicano, será a primeira mulher presidente dos Estados Unidos.
Apesar do êxito em confirmar sua candidatura, Harris nem sempre contou com amplo apoio entre os democratas. Aliás, ela passou os últimos três anos e meio tentando aplacar seus críticos, depois de um começo de mandato problemático.
Seus defensores e detratores concordam que não é fácil desempenhar o cargo que ela ocupa.
O trabalho de vice muitas vezes se dá nos bastidores. Suas vitórias acabam sendo creditadas à presidência, enquanto erros e fracassos da Casa Branca caem na conta do vice.
Assim que tomou posse como vice-presidente, Harris precisou tomar para si algumas das tarefas mais complicadas do governo Biden, como a questão migratória, o direito ao aborto e a reforma eleitoral.
Kamala Harris foi pioneira em muitos aspectos. Ex-procuradora-geral da Califórnia, ela foi a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos e também a primeira pessoa afro-americana e de ascendência asiática a ocupar o cargo.
A BBC lista abaixo alguns dos desafios que Kamala Harris precisou enfrentar como vice-presidente dos Estados Unidos.
- A fronteira, seu maior desafio
A crise migratória foi a primeira grande missão de Harris – e também o tema que mais prejudicou sua popularidade.
Em 2021, o presidente Biden colocou em suas mãos uma tarefa de alta importância. Ela deveria abordar as causas profundas da migração de pessoas sem documentos para os Estados Unidos, vindas de países centro-americanos.
Era um momento complicado. Os migrantes se acumulavam em números recordes na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Muitos deles vinham de El Salvador, Guatemala e Honduras – o chamado Triângulo Norte da América Central.
O governo americano procurava deter este fluxo, ao mesmo tempo em que revogava algumas das políticas mais draconianas do governo Trump.
A tarefa era considerada difícil, mas administrável, segundo o correspondente da BBC nos Estados Unidos, Anthony Zurcher, quando Harris completou um ano no cargo. Biden havia desempenhado um papel similar como vice-presidente, no governo Barack Obama (2009-2017).
Mas outras pessoas assumiram as questões referentes à imigração, e a segurança da fronteira ficou sob responsabilidade de Harris. Os dois temas representam grandes desafios para o governo americano há décadas.
Harris demorou seis meses para visitar a fronteira com o México. A demora gerou críticas dos republicanos e também de alguns democratas.
Sua viagem ao México e à Guatemala foi comprometida por uma entrevista concedida ao jornalista Lester Holt, da rede de TV americana NBC.
Nela, Harris teve dificuldades para explicar a estratégia do governo em relação à crise migratória e minimizou o fato de não ter visitado a zona fronteiriça antes.
Grande parte da imprensa americana considerou a fala “desastrosa”. E, segundo declarações de funcionários da Casa Branca e do próprio escritório da vice-presidente ao jornal The New York Times, Harris “praticamente se fechou em um bunker por um ano”, o que levou seus assistentes a interpretar a atitude como medo de cometer erros e decepcionar Biden.
Desde então, Kamala Harris virou alvo de duras críticas republicanas em assuntos de fronteira.
O governador do Texas, Greg Abbott, chegou a enviar para a residência da vice-presidente diversos ônibus com imigrantes que solicitavam asilo. Já o sindicato da guarda fronteiriça criticou a vice ao longo destes anos e chegou a pedir sua demissão em 2023.
Mas a missão de abordar as causas da crise migratória teve mais sucesso.
Harris conseguiu fazer com que o setor privado se comprometesse a destinar US$ 5,2 bilhões (cerca de R$ 29,4 bilhões) como parte da iniciativa “América Central Avança”, segundo a Casa Branca.
A intenção é oferecer oportunidades econômicas aos moradores locais, para que não necessitem emigrar.
- O direito ao aborto, sua bandeira
As críticas devido à crise migratória podem ter levado Kamala Harris a manter um perfil mais discreto, mas outra das tarefas delegadas por Biden ofereceu a ela um papel mais proeminente.
Em 2022, a Suprema Corte americana decidiu revogar a proteção constitucional do direito ao aborto, anulando a histórica sentença de 1973, conhecida como o caso Roe vs. Wade, que servia de precedente legal para o direito.
Foi então que Kamala Harris abraçou o direito ao aborto e, de forma geral, os direitos das mulheres.
Desde então, o aborto se tornou um dos principais temas para os democratas – e a vice-presidente passou a ser uma voz de referência no assunto.
No ano que se seguiu à anulação da sentença do caso Roe vs. Wade, Harris se reuniu com líderes de 38 Estados. Ela prometeu priorizar os direitos reprodutivos e o livre acesso ao aborto durante as eleições de meio de mandato, realizadas em 2022.
Os democratas se saíram inesperadamente bem naquela eleição. O aborto passou a ser o assunto mais importante para 27% dos americanos, ficando atrás apenas da inflação.
Com isso, 59% dos eleitores garantiram que o aborto continuasse legalizado, o que foi uma grande vitória para o programa democrata e para a vice-presidente em particular.
Em janeiro, Harris iniciou sua campanha intitulada “Luta pelas liberdades reprodutivas”. Ela levou a questão para todo o país e se tornou a primeira vice-presidente americana a visitar uma clínica de aborto.
- O trabalho de bastidores
Outra missão importante delegada por Biden a Harris foi a de liderar as iniciativas do governo para tentar aprovar uma lei sobre o direito ao voto.
Depois das acusações infundadas de fraude apresentadas por Donald Trump nas eleições presidenciais de 2020, alguns Estados controlados por republicanos aprovaram leis para inibir as iniciativas de facilitar a votação, como o voto pelo correio.
O presidente Biden qualificou a iniciativa de “um assalto à nossa democracia”. E Harris assumiu a tarefa de liderar as reformas.
Mas a oposição republicana unificada e as ações de alguns democratas fizeram com que os esforços da vice-presidente fossem condenados ao fracasso.
A “Lei da Liberdade do Voto John R. Lewis”, batizada em homenagem a um ativista dos direitos civis (1940-2020), acabou sendo rejeitada pelo Senado. Mas suas negociações permitiram à vice-presidente estabelecer coalizões políticas com líderes dos direitos civis, segundo o site Político.
Enquanto Harris passava boa parte de seu tempo dedicada a trabalhos de bastidores, invisíveis ao público, muitas pessoas se perguntavam, até dentro de seu partido, onde estava ou o que fazia a vice-presidente.
Além disso, em grande parte do mandato de Harris, o Senado estava dividido em partes iguais, o que fez com que o voto da vice-presidente fosse particularmente importante. (A Constituição dos EUA estabelece que o vice-presidente tem o poder de desempatar votações no Senado).
Esse fator levou Harris a se manter em Washington. Ela precisava estar disponível para dar seu voto de desempate quando necessário.
Harris foi a vice-presidente americana que mais deu votos de desempate nas votações do Senado americano. Foram 33 votos, o que corresponde a cerca de 10% de todos os desempates ocorridos na história do país, desde 1789.
Mas, nas eleições de meio de mandato, os republicanos perderam um senador e o voto da vice-presidente passou a ser menos necessário. Com isso, ela ficou mais livre para viajar pelo país.
“Muitos democratas não sabem o que ela está fazendo e o fato de que ela não é muito boa comunicadora também não ajuda”, reconheceu uma representante local do partido ao jornal The Washington Post, em 2023.
Os tropeços em seu primeiro ano como vice-presidente reduziram a sua popularidade e fizeram com que ela concedesse menos entrevistas. Com isso, ela saiu do olhar do público.
“O mandato de Harris foi decepcionante, marcado por problemas de comunicação”, declararam ao jornal fontes democratas em diversos pontos do país.
Para essas fontes, “às vezes, ela era quase invisível, o que deixou muitos democratas pouco convencidos de que ela tenha força, carisma e habilidade para construir uma campanha presidencial vencedora”.
Mas isso foi em 2023. No último ano, Kamala Harris ganhou proeminência.
A vice-presidente realizou 60 viagens e aumentou sua visibilidade. Seus aliados garantem que ela adquiriu um papel mais importante, antes mesmo que a campanha de Biden começasse a fazer água, após o péssimo desempenho do presidente no debate de junho contra Donald Trump.
A renúncia de Joe Biden como candidato à reeleição gerou uma guinada na campanha. E o Partido Democrata, no momento, parece ter cerrado fileiras em torno de Kamala Harris.
Fonte: BBC Brasil