Há quase um mês, Kamala Harris apareceu no programa The View, da rede americana ABC, no que se esperava ser uma entrevista amistosa com o objetivo de se apresentar aos americanos que queriam saber mais sobre ela.
Mas a conversa foi rapidamente ofuscada por sua resposta a uma pergunta sobre o que ela teria feito de diferente do presidente em exercício, Joe Biden: “Não me vem nada à mente”.
A resposta de Kamala — que virou munição para ataques republicanos em loop — ressaltou os ventos políticos desfavoráveis que sua campanha inicial não conseguiu contornar em sua derrota decisiva para Donald Trump na terça-feira (5/11).
Publicamente, ela admitiu a derrota na tarde de quarta-feira (6/11), dizendo aos seus apoiadores: “Não se desesperem”.
Mas a reflexão sobre onde ela errou e o que mais poderia ter feito provavelmente vai levar mais tempo, à medida que os democratas começarem a apontar o dedo e a levantar questões sobre o futuro do partido.
Os chefes de campanha de Kamala permaneceram em silêncio nas primeiras horas de quarta-feira, enquanto alguns assessores manifestavam choque e lamentação pelo que esperavam ser uma disputa muito mais acirrada.
“Perder é extremamente doloroso. É difícil”, disse a coordenadora de campanha de Kamala, Jen O’Malley Dillon, em um e-mail enviado à equipe na quarta-feira. “Isso vai levar muito tempo para ser processado.”
Como vice-presidente em exercício, Kamala Harris não conseguiu se desvincular de um presidente impopular e convencer os eleitores de que poderia oferecer a mudança que eles buscavam em meio a uma ansiedade econômica generalizada.
A bagagem de Biden
Depois que Biden desistiu da disputa após um desempenho desastroso em um debate, Kamala foi alçada ao topo da chapa, evitando o escrutínio de uma primária sem que um único voto fosse necessário.
Ela começou sua campanha de 100 dias prometendo uma “nova geração de liderança”, mobilizando as mulheres em torno do direito ao aborto e prometendo reconquistar os eleitores da classe trabalhadora, concentrando-se em questões econômicas, incluindo o aumento do custo de vida e o acesso à moradia.
Faltando apenas três meses para o dia da eleição, ela gerou um ímpeto inicial, que incluiu uma enxurrada de memes nas redes sociais, uma lista de endosso repleta de celebridades, como Taylor Swift, e recorde de doações. Mas Kamala não conseguiu se livrar do sentimento de aversão a Biden que permeava grande parte do eleitorado.
O índice de aprovação do presidente tem oscilado consistentemente na casa dos 40% ao longo de seus quatro anos no cargo, enquanto cerca de dois terços dos eleitores dizem acreditar que os EUA estão no caminho errado.
Alguns aliados questionaram de forma privada se Kamala permaneceu leal demais a Biden em sua tentativa de substituí-lo. Mas Jamal Simmons, ex-diretor de comunicação da vice-presidente, classificou este pensamento como uma “armadilha”, argumentando que qualquer distanciamento apenas daria aos republicanos outra linha de ataque por deslealdade.
“Você não consegue fugir do presidente que te escolheu”, diz ele.
Kamala tentou seguir a linha tênue de abordar o histórico do governo sem lançar sombra sobre seu chefe, demonstrando relutância em romper com qualquer uma das políticas de Biden e, ao mesmo tempo, não as promovendo ostensivamente ao longo da campanha.
Mas ela não conseguiu apresentar um argumento convincente sobre por que deveria liderar o país — e como lidaria com as frustrações econômicas e com as preocupações generalizadas sobre a imigração.
decisão tática de destacar novamente os riscos de uma segunda presidência de Trump, chamando o ex-presidente de “fascista” e fazendo campanha com republicanos descontentes e fartos de sua retórica.
Depois que o ex-chefe de gabinete de Trump na Casa Branca, John Kelly, disse ao jornal americano New York Times que Trump falou com aprovação sobre Adolf Hitler, Kamala fez comentários fora de sua residência oficial descrevendo o presidente como “desequilibrado e instável”.
“Kamala Harris perdeu essa eleição quando passou a se concentrar quase exclusivamente em atacar Donald Trump”, afirmou Frank Luntz, pesquisador de opinião republicano veterano, na noite de terça-feira.
“Os eleitores já sabem tudo o que há sobre Trump, mas ainda queriam saber mais sobre os planos de Kamala para a primeira hora, o primeiro dia, o primeiro mês e o primeiro ano do seu governo.”
“Foi um fracasso colossal para a campanha dela chamar mais atenção para Trump do que para as próprias ideias de Kamala Harris”, acrescentou.
Em última análise, a coalizão vencedora que Kamala precisava para derrotar Trump nunca se concretizou, e a rejeição retumbante dos eleitores aos democratas mostrou que o partido tem um problema mais grave do que simplesmente um presidente impopular.