‘Isenção de IR até R$ 5 mil é medida eleitoreira de Lula’, afirma economista Samuel Pessôa

Economia

A decisão do governo de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil, em meio a uma crise fiscal, é uma “medida eleitoreira”, de olho na disputa presidencial de 2026, critica o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office.

Na sua leitura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mira o eleitorado de classe média, com renda de R$ 3 mil a R$ 5 mil, para fortalecer sua tentativa de reeleição.

A expectativa do Ministério da Fazenda é aprovar o aumento da isenção, hoje limitada a dois salários-mínimos (R$ 2.824), no Congresso no próximo ano, para que ela entre em vigor em 2026.

O problema, diz Pessôa, é que a medida está sendo proposta num momento de desequilíbrio das contas públicas e tende a agravar esse quadro, provocando aumento de inflação no país.

Após o anúncio da proposta, o dólar disparou e chegou a valer mais de R$ 6 nesta quinta-feira (28/11), o que deve encarecer produtos importados ou produzidos no Brasil, mas cotados internacionalmente, o que inclui alimentos.

“A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica”, afirma Pessôa.

“Uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?”, questiona em outra trecho da entrevista.

A proposta de aumentar a isenção veio junto com outras medidas de cortes de gastos e a previsão de criar um imposto mínimo de 10% sobre rendas mensais de mais de R$ 50 mil. A projeção da Fazenda é economizar R$ 70 bilhões em dois anos.

Para o economista, os cortes anunciados são positivos, mas insuficientes para evitar a explosão da dívida pública, devido à tendência de crescimento de despesas obrigatórias, como aposentadorias, acima da expansão econômica do país.

A reação negativa do mercado financeiro veio justamente com a disparada do dólar, que gerou reação da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann. ” É impressionante a especulação contra o Brasil”, escreveu na rede social X.

Para Pessôa, o dólar poderia estar a R$ 4,50, não fosse o aumento da percepção de risco que está provocando saída de investidores.

“É difícil a esquerda entender o problema porque a esquerda adora uma teoria conspiratória. […] Se o mundo todo não está vindo investir aqui, é porque o mundo está vendo um risco que tem que ser encaminhado. Porque desequilíbrio fiscal não é uma coisa pequena”, reforça.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O governo surpreendeu ao anunciar o esperado pacote de corte de gastos com medidas tributárias. Como avalia esse anúncio conjunto?

Samuel Pessôa – Acho que ter misturado controle de gasto com reforma da tributação da renda, uma medida que tem claro caráter eleitoral, foi ruim. Essa medida de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil por mês é uma decisão do Lula pensando na disputa eleitoral de 2026.

Ele avalia que quem ganha abaixo de R$ 2 mil, R$ 3 mil por mês vota nele e quem ganha acima de R$ 5 mil vota na direita, e aí essa é a turma [renda entre R$ 3 mil e R$ 5 mil] que ele está disputando.

Então, é uma medida que tem um caráter eleitoral e é contra os problemas que nós temos porque a gente tem um problema fiscal [desequilíbrio entre receitas e despesas].

Inclusive, uma das medidas que está no pacote, é a previsão de que, se as metas de superávit primário não forem atendidas, a partir de 2027 serão acionados gatilhos [para conter gastos]. E um deles é que não pode dar nenhuma desoneração adicional. Então, ele começa um pacote aumentando a desoneração, percebe a inconsistência?

Agora, as medidas em si de controle de gastos são bem-vindas. São insuficientes para o tamanho do problema, mas são todas bem-vindas.

BBC News Brasil – Os defensores da proposta de isentar a renda até R$ 5 mil e tributar mais o que ganham acima de R$ 50 mil dizem que é uma medida progressiva, positiva para a distribuição de renda. Discorda?

Samuel Pessôa – Eu acho que a medida é progressiva, ela reduz a desigualdade de renda. A gente sabe que o Brasil é um país muito desigual. Agora, qual é o foco? O foco é atacar o problema fiscal, porque o problema fiscal está gerando inflação e inflação é muito ruim para os mais pobres também. Então, o problema é resolver o fiscal ou reduzir a desigualdade do país hoje?

A questão de desigualdade é uma questão estrutural. O ministro tem dito que tem como objetivo fazer uma grande reformulação dos impostos de renda, com vistas a reduzir o grau de regressividade e talvez tornar os impostos de renda brasileiros mais progressivos. O ministro está absolutamente correto. Agora, isso demandaria uma revisão mais ampla de todos os impostos de renda. Não é isso que foi feito.

O que foi feito é uma medida que, no momento, no meu entender, é eleitoreira para que o presidente consiga que uma parte da população, cuja maioria não votaria com ele, passe a votar com ele em 2026 e um esparadrapo [a tributação dos mais ricos] para tirar [obter] uma fonte de receita.

Mas, tudo bem, vamos esperar a tramitação. Espero que o Congresso aprove tudo, porque o grande medo que fica é o Congresso aprovar a isenção, o aumento da tabela do Imposto de Renda, e não aprovar o imposto sobre os ricos. Aí cria um desequilíbrio fiscal, agrava o problema.

BBC News Brasil – Como a renda média brasileira é baixa, uma parte grande da população entra nessa faixa de R$ 5 mil. Isentar essa faixa cria um impacto fiscal muito grande?

Samuel Pessôa – Eu acho que é muito ruim. Não sei os números exatos, mas é abrir mão de alguma coisa como R$ 50 bilhões de receita [o governo estima perdas menores, de R$ 35 bilhões, mas a proposta ainda não foi detalhada].

Seria interessante a gente ver um estudo: dada a estrutura de renda brasileira, dado o que ocorre em outros países, o que seria razoável de faixa de isenção de Imposto de Renda? Agora, essa decisão é de natureza política. Os economistas não têm muito o que dizer a respeito.

É uma arbitragem que o presidente, com toda a legitimidade da eleição majoritária, faz. E o Congresso avalia e aprova ou não. A única crítica que eu faço é que, a mim, não faz muito sentido esse tipo de discussão quando a gente está no meio de uma crise fiscal, com a dívida pública crescendo de forma explosiva.

BBC News Brasil – E esse crescimento explosivo da dívida pública, na sua visão, impacta os mais pobres ao gerar inflação?

Samuel Pessôa – Exatamente. A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica.

BBC News Brasil – Isoladamente, essa medida de fixar uma alíquota mínima de 10% para os que ganham mais de R$ 50 mil por mês é positiva?

Samuel Pessôa – Aí tem que ver os detalhes. Eu acho que o esforço de mudar a legislação brasileira, tributando mais os ricos é positivo. Há sinais de que as altas rendas no Brasil, pagam pouco imposto. Essa medida é um esparadrapo, vai pegar um monte de coisa diferente. Eu não acharia que essa é a melhor maneira de tratar esse tema.

A questão é que há vários regimes tributários com regras diferentes. Tem gente que pagou na Pessoa Jurídica 34% e outros que pagaram na Pessoa Jurídica 5%.

Se na Pessoa Física ambos pagarem menos do que 10% da renda declarada, eles serão cobrados pela diferença até atingir 10% de alíquota média efetiva [segundo a nova proposta do governo], sem considerar que pagaram valores diferentes na jurídica.

Esse tema está sendo tratado desse jeito porque a área política do governo convenceu o Lula que, para deixar a esquerda mais feliz, como contrapartida de um programa de contenção de gastos, teria que vir alguma coisa na direção de melhorar a progressividade dos impostos e fizeram um esparadrapo. Dado que vai isentar até R$ 5 mil, é melhor ter esse imposto [sobre os mais ricos].

regras que nós temos, necessariamente a gente vai ter uma crise fiscal futura. Não é que tem desperdício do Estado brasileiro, não é que o Estado brasileiro joga dinheiro fora. O que acontece é que a gente tem regras, e a simples operação dessas regras obriga a uma trajetória da dívida pública que é explosiva.

Isso significa que a nossa sociedade não consegue se entender. Existe um conflito distributivo aberto, que não está solucionado. Agora, uma sociedade que vive conflito distributivo aberto e não soluciona, é uma sociedade que não tem estabilidade, em que ninguém vai investir, e quem tem dinheiro tira. Isso que está acontecendo.

BBC News Brasil – As regras que você cita são as despesas obrigatórias?

Samuel Pessôa – Exatamente. A gente tem um problema de despesas obrigatórias que crescem a uma velocidade maior do que a economia. Lá com o [governo Michel] Temer, a gente resolveu esse problema [adotando o teto de gastos, que limitava o aumento das despesas à inflação]. Aí a sociedade não aceitou, elegeu o Lula, o Lula repôs esses problemas.

BBC News Brasil – Críticos do teto de gastos adotado no governo Temer dizem que a regra levou ao sucateamento de alguns serviços públicos, que ficaram com menos receitas.

Samuel Pessôa – Eu entendo perfeitamente. Então, esse que é o conflito distributivo. As pessoas querem o Estado maior, mas aí essas mesmas pessoas não querem pagar mais imposto. E o mundo todo diz: naquela sociedade, os caras não se entendem. Caíram numa crise fiscal profunda, aí impicharam a presidente e arrumaram a coisa. Aí teve uma eleição, o novo presidente não gosta dessa arrumação, a sociedade não gosta, ele desfaz a arrumação e volta os problemas que tinha antes.

BBC News Brasil – Como avalia as medidas para cortes de gastos, como a limitação do aumento do salário mínimo?

Samuel Pessôa – O governo diz que vai colocar a regra do salário mínimo dentro do arcabouço fiscal [limitando o reajuste anual a 2,5% acima da inflação] .

Isso quer dizer que a taxa de crescimento do salário mínimo real será a mesma taxa de crescimento do gasto total. O problema é o seguinte: as políticas públicas vinculadas ao mínimo crescem pela soma da taxa de crescimento do valor real do benefício com a taxa de crescimento do número de beneficiários.

Ora, o número de beneficiários no Brasil cresce com a demografia. Essencialmente é a terceira idade [pessoas que estão envelhecendo e se aposentam pelo INSS, com aposentadoria vinculada ao salário mínimo].

Bem, então a demografia que importa no nosso Welfare State [Estado do bem-estar social] é mais ou menos a terceira idade, o pessoal que está chegando aos 60 anos. Ora, no Brasil, 60 anos atrás, a taxa de crescimento populacional era quase 3%. Então, a quantidade de benefícios cresce a 3%, o valor real cresce a 2,5%, deu 5,5%.

Então, todas as políticas públicas do Estado de bem-estar social brasileiro, vinculado ao mínimo, por essa regra, tem que crescer 5,5%. Mas a economia cresce a 2,5% [essa taxa varia ano a ano, mas tem se mantido baixa na média]. Isso é uma impossibilidade lógica. Então, só pra te dar um exemplo das limitações do pacote.

Quando a gente pôs, lá no governo Temer, o salário-mínimo crescendo em termos reais a zero, não é porque o Temer é malvado e quer ferrar pessoas. É que, dada a demografia brasileira, é muito difícil dar aumentos reais de salário mínimo na atual circunstância nossa.

Aumento real de salário-mínimo contrata uma crise fiscal, uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?

BBC News Brasil – Como está seu otimismo para a votação do pacote no Congresso?

Samuel Pessôa – Eu estou otimista com o Congresso. Se a gente olhar, o Congresso, nesse terceiro mandato do presidente Lula, tem sido muito parceiro do Executivo. Aprovou a reforma tributária, aprovou o arcabouço fiscal, aprovou um conjunto imenso de regras e leis que o ministro Haddad enviou para o Congresso Nacional para reduzir oportunidades de planejamento tributário [brechas para pagar menos impostos]. Tudo isso passou pelo Congresso.

Então, o Congresso não tem sido nenhum empecilho a ajuste fiscal. Tem a questão das emendas impositivas que, no meu entender, são muito ruins. Elas apareceram por um motivo: a sociedade elegeu presidentes fracos, tanto Dilma Rousseff como Jair Bolsonaro, e aí, quando o presidente é fraco, o Congresso vai lá e ocupa o lugar. Desfazer depois fica difícil.

Espero que o presidente Lula, com todo o talento dele, consiga, pelo menos em parte, desfazer. Uma parte já foi feita, é um dos efeitos positivos desse pacote, que prevê uma limitação para o crescimento das emendas e pega outra parte das emendas e põe metade na área da saúde. São medidas positivas.

BBC News Brasil – Como avalia o desempenho do ministro Fernando Haddad, levando em conta as disputas internas dentro do governo?

Samuel Pessôa – Eu acho que Haddad está fazendo o melhor que ele pode. Eu avalio positivamente o trabalho dele. A gente sabe que esse ruído que deu, do anúncio de um pacote fiscal junto com uma desoneração, foi uma derrota pessoal dele. O presidente arbitrou [a disputa com a Fazenda] e a área política, digamos assim, ganhou.

Fonte: BBC Brasil

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