Para alguns, seria o primeiro passo rumo a um futuro matrimônio católico homoafetivo. Mas especialistas em religião explicam que não é bem assim.
Nesta segunda-feira (18), a Igreja publicou uma declaração doutrinária que permite bênçãos a casais homoafetivos e outros considerados “irregulares” pelas regras católicas — como os casais em segunda união.
Intitulado Fiducia Supplicans, o documento foi emitido pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, antigo Santo Ofício, com aprovação do papa Francisco.
Dentro da Igreja Católica, a função do Dicastério para a Doutrina da Fé é “promover e tutelar a doutrina católica sobre fé e moral”.
Este é o primeiro documento do tipo que o órgão publica em 23 anos — ou seja, o primeiro sob o comando do argentino Victor Fernández.
Amigo do papa Francisco e ghost writer de vários documentos assinados por ele, Fernández era arcebispo de La Plata, na Argentina, quando foi nomeado, em julho, o novo prefeito do dicastério.
A declaração de certa forma corrige uma anterior, emitida pelo mesmo dicastério em 2021.
Na ocasião, em forma de comunicado — ou seja, sem o mesmo peso institucional do que agora —, o órgão afirmou que o catolicismo não abençoava uniões homoafetivas, enfatizando que “a Igreja não dispõe, nem pode dispor, do poder de abençoar uniões de pessoas do mesmo sexo”.
Nos bastidores, se dizia que Francisco não gostou da repercussão daquele comunicado — o que indicaria uma possível influência do sumo pontífice no documento publicado nesta segunda-feira.
“A publicação é uma coisa muito importante, porque não esperada [em forma de declaração doutrinária]”, comenta à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e vice-diretor do Lay Centre, também em Roma.
“O que se sabia é que o papa não tinha ficado muito satisfeito com a versão final do documento de 2021. Apesar disso, ele concedeu o ok. Havia várias teorias e especulações, mas o que se sabe é que ele não ficou contente com a forma como aquilo foi a público”, afirma o especialista.
“Tanto que, depois disso, ele fez vários gestos e falou de uma forma contrária àquilo que havia sido dito no comunicado”, acrescenta, lembrando dos discursos de acolhimento de Francisco às pessoas LGBTQIA+ e a outros grupos historicamente “excluídos” da Igreja.
caso a caso. O que a Igreja diz é que os fiéis têm o direito de receber o cuidado pastoral.”
“Essa bênção de caráter pastoral mas não sacramental já vinha sendo feita por vários padres e poderá continuar sendo feita. Agora existe um estímulo, uma confirmação do Vaticano de que esse gesto de acolhida pastoral feita pelo padre é desejado pela Igreja, desde que fique claro que não é um gesto sacramental”, diz Ribeiro Neto.
“Os padres são obrigados? Não. Não institucionalmente”, completa. “Mas eles são obrigados moralmente. É uma questão moral. Convencidos de que as pessoas que pedem a bênção querem realmente ter uma conduta adequada.”
Ribeiro Neto acrescenta ainda que, na hipótese de “essa benção ser solicitada apenas para justificar uma festa ao estilo de um casamento, o padre não está obrigado e, ao contrário, não deverá dar essa benção”.
Casamento católico gay?
O sociólogo concorda com o vaticanista no sentido de que essa mudança não pode ser vista como um passo rumo ao casamento católico gay.
“Francisco não está avançando no sentido de permitir, mas está avançando no sentido de criar uma categoria que garanta o acolhimento aos homossexuais, sem com isso levar a um sacramento dado ao casamento homoafetivo”, comenta.
“Nesse sentido é, de certa forma, até um afastamento dessa possível interpretação de caminhar para um casamento homoafetivo”, argumenta.
“Significa que ele está criando uma categoria justamente para acabar com essa polêmica sobre ter ou não um casamento homoafetivo. Os casais homoafetivos que quiserem receber a ajuda de Deus, o reconhecimento da Igreja, vão ter essa bênção.”
Segundo Ribeiro Neto, antes da possibilidade dessa bênção, “havia um desejo das pessoas terem acesso ao sacramento”, já que sem esse acesso, era “como se elas estivessem excluídas do amor de Deus.”
“Agora existe uma situação onde elas continuam não recebendo o sacramento, mas se sabem incluídas no amor de Deus”, conclui o sociólogo
nos membros mais conservadores da Igreja.
Em julho, o grupo norte-americano Bishop Accountability classificou a escolha como “preocupante” e afirmou que Fernández — segundo a entidade, por ter encoberto um caso de abuso sexual infantil em sua jurisdição — deveria ser “investigado” pelo Vaticano, e “não promovido”.
Em julho, a imprensa italiana publicou que cardeais conservadores referiam-se a Fernández como o “nocivo ghost writer” de textos de Francisco, entre os quais a exortação Amoris Laetitia, que trazia uma abertura importante para casais em segunda união.
O argentino, disse o jornal Il Fatto Quotidiano, é classificado por opositores como “gay e efeminado” e criticado pelo livro sobre “a teologia do beijo”.
De acordo com fontes no Vaticano, a função da Doutrina da Fé deve ser agora muito mais voltada para dialogar com questões contemporâneas do que como instrumento de tutela da doutrina católica.
Fonte: BBC Brasil