Uma entrevista de 2001 com o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger. Deus, o mal, o perdão, as origens humildes, a “difícil tarefa” no ex-Santo Ofício. “Sinto-me um homem simples”
Era o dia 12 de novembro de 2001. Estávamos no Palácio da Congregação para a Doutrina da Fé para fazer uma entrevista com o então Prefeito, Cardeal Joseph Ratzinger. Olhos brilhantes, o habitual sorriso que conhecíamos, maneiras discretas e disponibilidade de falar sem muitos esquemas pré-estabelecidos. A ocasião foi o lançamento, dois meses antes, na Itália, do livro-entrevista “Deus e o Mundo. Ser cristão no novo milênio”, escrito a partir de encontros com o jornalista Peter Seewald. Foi uma ampla conversa que tocou vários tópicos, incluindo uma referência às suas humildes origens na cidadezinha da Baviera, onde dizia que realmente se sentia em casa.
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Sinto-me um homem simples
A recordação de seus pais, de uma bondade que também tinha contemplado o “não”, o importante, dizia, é que provêm “não de um sentido de reivindicação, de poder”, mas de “uma bondade última, do desejo de fazer o bem ao outro”. Disse isto com sua proverbial gentileza – a mesma bondade sobre a qual o Papa Francisco insistiu tanto em sua homilia no Te Deum de sábado (31/12) – admitindo que não se sentia tanto como um cardeal na época, mas sim “um homem simples”. Aos jovens ele aconselhava que tivessem confiança, confiança em uma Igreja que sobrevive, enquanto até mesmo regimes fortes “caíram”.
Deus é amor que chega a morrer por nós
O livro-entrevista “Deus e o Mundo” foi publicado na Itália após os ataques terroristas às torres gêmeas em Nova York. Nossa conversa foi assim uma oportunidade de voltar a um tema crucial que ele gostaria de ter incluído melhor no texto e que tornou explícito em nossa entrevista. Tratava-se precisamente do “problema do abuso do nome de Deus, em nome de uma religião politizada e tão subserviente ao poder que se torna um fator de poder”. O cardeal explicou então que, se olharmos para o rosto de Cristo, este é o rosto de um Deus que “sofre por nós e não usa a onipotência para regular as realidades do mundo com um golpe de poder, mas vai ao nosso coração e a um amor que chega a morrer por nós”.
Deus exclui todos os tipos de violência
Se olharmos para Cristo, “temos uma visão de um Deus que exclui todos os tipos de violência”, afirmava claramente. Palavras que hoje, no Dia Mundial da Paz, não podem deixar de ressoar com extrema atualidade. Premissas necessárias para outras palavras que se revelam tão proféticas, se olharmos para o conflito que está destruindo o coração da Europa nos últimos meses. O então Prefeito da Congregação da Fé, convidado a esclarecer os termos do conceito de “guerra justa”, reiterava o conteúdo presente no Catecismo da Igreja Católica e acrescentava: “Penso que a tradição cristã sobre este ponto tenha elaborado respostas que devem ser atualizadas com base nas novas possibilidades de destruição, dos novos perigos”.
O homem tem o desejo de um além que traga doçura
“Deus não, religião sim”: um dos slogans mencionados no livro escrito com Seewald e no qual Ratzinger explicava que o homem, por um lado, tem um desejo natural de se encontrar com o infinito, com “um além que lhe traga doçura”, por outro lado, facilmente cede a “uma espécie de mística anônima” que dá um pouco de alívio, mas não exige um compromisso pessoal. Sem uma resposta individual, enfatizava, se permanece no que ele definia uma ampliação do próprio eu, mas que é “uma coisa vazia”, terminando o eu para permanecer “na prisão do eu”.
Deus não é manipulável
Ratzinger apontou o risco de criar um Deus de acordo com as próprias necessidades e segundo a própria imagem: “Deus não é manipulável de acordo com minhas ideias ou desejos”. Era algo que sentia que repetia com frequência, considerando o papel que desempenhava na época. Um papel – defender a verdade de Cristo em absoluta fidelidade às Escrituras, mas na encarnação do tempo presente – realizado ao longo de vinte anos (de 1981 a 2005) que ele considerava “uma tarefa difícil mesmo porque o conceito de autoridade quase não existe mais. Que uma autoridade possa decidir alguma coisa já parece incompatível com a liberdade de todos de fazer o que querem e sentem”.
A Igreja é a base sobre a qual viver e morrer
“Busca-se uma simplificação da visão do mundo”: Deus considerado como um mito, uma grande personalidade humana, um Deus cruel… O Cardeal Ratzinger percebeu o quanto a sua profissão fosse “uma tarefa incômoda”, que poderia criar “reações negativas”. Os que são encarregados de “defender a identidade da fé católica nestas correntes podem aparecer como opositores da liberdade de pensamento”, observava, “uma opressão do pensamento livre”. No entanto, falava de muitos que exprimiam gratidão “porque a Igreja Católica continua sendo uma força que expressa a fé católica e dá uma base sobre a qual se pode viver e morrer. E isto”, acrescentava, ” para mim é consolador e satisfatório”. Ver tantas pessoas gratas pela voz da Igreja que “sem violência” procura responder aos grandes desafios do nosso tempo. Aquela Igreja da qual, como Papa e depois como Papa Emérito, ele foi um humilde servo até o fim.
Fonte: Vatican News.