Por que Japão, ‘carrasco’ do Brasil na Olimpíada, é tão bom nos esportes

Esportes

No futebol feminino, o Japão fez gol nos acréscimos e venceu a seleção brasileira. No skate, Rayssa Leal, medalha de bronze, só não esteve em um lugar mais alto no pódio porque duas japonesas ficaram na frente.

No judô, a campeã olímpica Rafaela Silva perdeu a disputa do bronze para uma judoca japonesa. E esses são só alguns exemplos dos primeiros dias de Jogos Olímpicos…

O Japão tem se mostrado um “carrasco” para os atletas brasileiros nos Jogos de Paris 2024 — o que, como tudo no Brasil, deu origem a uma onda de memes nas redes sociais.

Até o perfil oficial do Comitê Olímpico do Brasil (COB), o @Time Brasil, entrou na brincadeira e anunciou que “bloqueou” o perfil oficial dos japoneses, o @TeamJapan.

Na última Olimpíada, em Tóquio, o Japão terminou em terceiro lugar, com 27 medalhas de ouro e 58 no total, um recorde para o país,

O desempenho de destaque dos japoneses ocorre em meio a investimentos na área de esportes, impulsionados pelos Jogos de Tóquio, e uma cultura que valoriza o esporte desde as escolas.

“Não é apenas a edição de 2020 dos Jogos, em Tóquio, que leva o Japão a esse lugar. Isso começa com os primeiros jogos no país, em 1964, quando se criou uma cultura esportiva”, diz o professor Nelson Todt, coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e presidente do Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin, dedicado ao francês que criou os Jogos da era moderna.

“E essa cultura se sustenta pelo sistema educacional, por uma política que investe no esporte, patrocinadores… Não é algo só de agora.”

Desde 2015, o país mantém ainda projetos como o chamado “melhoria da capacidade esportiva”, segundo o Ministério de Cultura, Esporte, Ciência e Tecnologia.

Isso acontece em meio a um crescente orçamento do governo japonês para o setor de esportes, segundo dados reunidos no site Statista.

Mas como o país se tornou uma potência olímpica?

Esportes ocidentais chegam ao Oriente (e às escolas)

A história do país com a prática de esportes começa bem antes da chegada das modalidades “ocidentais” – que hoje são a maioria em competições como os Jogos Olímpicos -, segundo a Embaixada do Japão no Brasil.

Os esportes tradicionais do Japão, muitos nascidos por volta do século 12, eram chamados de “budo”, com destaque para o kendo (esgrima japonesa com bastões de bambu), jujutsu (que deu origem ao judô e ao jiu-jitsu), kyudo (arco e flecha japonês) e o karatê.

Após a chamada Restauração Meiji, em 1868, quando imperador Meiji chegou ao trono e iniciou o processo de modernização e internacionalização mais vertiginoso da história japonesa, varias modalidades esportivas do Ocidente foram introduzidas, como beisebol, atletismo, rugby, futebol e patinação no gelo.

A popularização veio principalmente pelo sistema educacional a partir de 1870, com a inclusão da educação física no currículo escolar, com esportes como remo e tênis. Os esportes, segundo o texto da embaixada, também vieram acompanhados da ideia de “de que eram maneira de se obter disciplina mental”.

A Associação de Esportes Amadores do Japão (JASA) foi organizada em 1911, em preparação para os 5º Jogos Olímpicos, que aconteceram no ano seguinte em Estocolmo, na Suécia. O Brasil viria a participar dos jogos a partir de 1920.

Além das aulas de educação física, desde o século 20 as escolas japonesas realizam eventos esportivos anuais nos quais todos os alunos participam. São os chamados undokai.

Até hoje, eles ocorrem no início de outubro, num feriado nacional conhecido como Dia dos Esportes.

Esses eventos escolares incluem uma variedade de atividades, como caminhadas, corridas, natação, competições de esportes com bola, esqui e escalada.

Segundo pesquisadores, os eventos escolares oferecem aos participantes oportunidades “de cultivar virtudes como cooperação, solidariedade, trabalho em equipe e responsabilidade”.

Os esportes também fazem parte das chamadas bukatsu – algo que poderia ser traduzido como “atividades extracurriculares”.

Esses clubes escolares preenchem o horário livre das crianças, que escolhem qual atividade esportiva ou cultural pretendem seguir. Dependendo do bukatsu, as crianças podem treinar durante um turno e participar de jogos amistosos nos finais de semana ou dias de folga.

O papel das grandes empresas
Na segunda metade dos anos 1940, o Japão estava devastado após a derrota na Segunda Guerra ao lado da Alemanha nazista e da Itália fascista. O país também tinha sido arrasado pelas bombas atômicas jogadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki.

Os anos que se seguiram ficaram conhecidos como o “milagre econômico japonês”, com o apoio dos americanos em meio à Guerra Fria. Esse período de reconstrução teve um grande impulso com o surgimento de empresas locais, que passaram a exportar produtos inovadores e relativamente baratos para o mundo.

Nesse cenário, surgem grandes empresas japonesas de eletrônicos, como a Toshiba, e de carros, como a Honda.

Essas novas grandes empresas também tiveram papel importante no fortalecimento do esporte no país, segundo mostra artigo da revista Nipponia, mantida pelo Ministério das Relações Exteriores japonês nos anos 2000.

“Após a Segunda Guerra Mundial, um número crescente de graduados desejava continuar participando de esportes. Eles foram atraídos por grandes corporações, que usaram parte dos lucros obtidos durante os períodos de crescimento para estabelecer clubes esportivos internos”, escreveu Tamaki Masayuki, respeitado escritor de esportes no país.

“Os times corporativos competiam entre si, e logo se percebeu que os melhores jogadores eram uma excelente propaganda para suas empresas. Em pouco tempo, os programas esportivos corporativos estavam treinando os melhores atletas do Japão”.

No livro Japanese Sports: A History (Esportes no Japão, um história, em tradução livre), os autores Allen Guttmann e Lee Thompson escrevem que, no país que se reerguia no pós-guerra, a população também buscava o reconhecimento em “esportes modernos” que ganhavam espaço no mundo.

“Apesar da devastação, as crianças brincavam entre as ruínas e os adultos começavam, timidamente, a reconstruir as organizações e a infraestrutura material dos esportes japoneses. Como seus avós no período Meiji, eles queriam não apenas a oportunidade de participar em esportes tradicionais e modernos, mas também o reconhecimento internacional de suas conquistas atléticas”, dizem os autores no livro.

O esporte que atraiu cada vez mais atenção após a guerra foi o beisebol, esporte em que o Japão levou o ouro nos Jogos de Tóquio (em Paris, a modalidade não está no programa). Os patrocinadores corporativos utilizaram o esporte como uma “ferramenta de publicidade e promoção”, segundo Masayuki.

Mas a relação íntima entre empresas e esporte japoneses arrefeceu desde os anos 1990, já que crises econômicas levaram a menos investimentos nos clubes esportivos das companhias.

Grandes eventos e investimentos

Se as empresas ajudaram a popularizar alguns esportes, foram os grandes eventos que atraíram os japoneses para o esporte de alto rendimento.

Foi justamente no cenário pós-Guerra que o Japão sediou a Olimpíada de 1964 – o país chegou a ser excluído das competições em 1948, em Londres, mas foi readmitido em 1952, em Helsinque.

“Nesse Jogos de Tóquio, foi feita toda uma política esportiva para colocar o Japão como uma força mundial depois da Segunda Guerra”, explica Nelson Todt, do Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos da PUCRS.

A edição de 1964, segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), ocorreu “em meio a um novo movimento político para enfatizar a importância da educação física entre os jovens da nação. Políticas educacionais que promoviam esportes ao longo da vida foram introduzidas antes do evento, uma abordagem que continuou nas décadas seguintes”.

Além desse esforço olímpico, desde 1946, o Japão sedia anualmente o chamado Kokumin Taiiku Taikai (Festival Nacional de Esportes). A ideia era reerguer as modalidades e levantar o moral da população.

Em 1951, o Japão participou dos primeiros Jogos Asiáticos, realizados em Nova Délhi, Índia, onde já se consagrou como maior medalhista da região.

Esses eventos são encarados por pesquisadores como exemplos que promoveram “entusiasmo dos japoneses pelas grandes competições esportivas”.

Na esteira da segunda edição dos jogos de verão em solo japonês, realizados em Tóquio em 2021 em meio a pandemia de covid-19, o governo japonês lançou uma série de programas para incentivar o esporte.

“Nenhuma edição sozinha de Jogos vai melhorar a longo prazo a cultua esportiva. A curtíssimo prazo melhora, como o Brasil em 2016, o Reino Unido em 2012, porque tem investimento, atenção da mídia. Isso potencializa os resultados”, diz Todt.

Para o professor, os Jogos de 2020 no fim serviram mais “para modernizar o Japão, com pelo menos oito anos de preparo em novos esportes”. “O país se atualizou e entendeu a lógica que precisa ‘mudar para não ser mudado’, compreendendo a necessidade de adaptação a novas culturas esportivas”, diz o pesquisador, com exemplos como o sucesso no skate.

O Japão também sediou os Jogos Olímpicos de inverno 1972 e 1998, além da Copa do Mundo de futebol em 2002, junto com a Coreia do Sul.

Segundo os dados, o investimento em esporte foi crescendo ano após ano, com um grande aumento principalmente em 2016, na preparação para os Jogos Olímpicos.

O chamado “projeto de melhoria da capacidade esportiva” de 2015 determina recursos para que “cada organização esportiva realize acampamentos de treinamento para a equipe nacional japonesa, enviar atletas para competições internacionais, nomear treinadores nacionais”.

Outro programa, chamado J-STAR, apoia jovens que almejem competir em competições internacionais. O site oficial do programa diz que “através de medições e avaliações de sua força física e capacidade atlética, os participantes encontrarão o esporte que melhor se adapta a eles e passarão por treinamentos, como acampamentos de treinamento conduzidos por treinadores de alto nível”.

O governo japonês também oferece benefícios para o setor privado investir, como deduções fiscais para doadores de atividades esportivas.

Para Todt, a visão japonesa de longo prazo pode ensinar ao Brasil. O professor avalia que o Time Brasil faz “milagre”, com aumento de atletas, medalhas e participação feminina a cada edição.”Temos uma monocultura, do futebol. Não adianta o foco nos atletas só a cada quatro anos, com mídia e investidores. Tem que pensar no ‘olimpismo 365’, todos os dias do ano”.

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