Como brasileiros comem tubarão sem saber e ameaçam preservação da espécie

Brasil

Você já comeu tubarão? Provavelmente, não. Mas e cação?

Se sim, você não está sozinho. Segundo dados preliminares de uma sondagem encomendada por pesquisadores brasileiros aos quais a BBC News Brasil teve acesso, praticamente sete em cada 10 brasileiros (69%) “não sabem que carne de cação é de tubarão”.

É aí que está o problema — sem saber, comemos tubarão, um peixe com alto nível de toxicidade e cuja população vem reduzindo em número ao redor do mundo nas últimas décadas.

E não comemos pouco — o Brasil é o maior importador e consumidor de carne de tubarão do mundo, apesar de a grande maioria dos brasileiros não ter ideia disso “por falta de rotulagem adequada”, alertam as pesquisadoras Bianca Rangel e Nathalie Gil em entrevista à BBC News Brasil.

Essa rotulagem incorreta, aliada aos preços atraentes e à falta de uma política pública adequada, fazem do Brasil uma ameaça para a preservação da espécie — uma pesquisa estimou que a população de tubarões e arraias no mundo caiu 71% desde 1970, ao passo que a pesca predatória desses animais aumentou 18 vezes.

Neste sentido, uma maior conscientização da população sobre o que vai parar em sua mesa “pode ajudar na preservação dos tubarões”, diz Rangel, do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).

“Em vez de ser embalada com rotulagem adequada, a carne de tubarão é vendida no Brasil normalmente como cação, um nome ambíguo usado para várias espécies”, acrescenta Gil, da Sea Shepherd Brasil, ONG de conservação da vida marinha.

“Ou seja, os brasileiros não sabem que estão comendo tubarão”, ressaltam as pesquisadoras.

Prova disso está nas conclusões iniciais do levantamento que abre esta reportagem. A sondagem foi realizada pela agência independente de pesquisa Blend e encomendada pela Sea Sheperd Brasil com 5 mil brasileiros em todo o território nacional.

Recentemente, Rangel e Gil, em conjunto com três outros pesquisadores, escreveram um artigo, publicado na prestigiada revista Science, em que alertam sobre essa situação e sugerem como o Brasil pode ajudar a proteger a população de tubarões.

Importação e consumo
Segundo explicam as pesquisadoras, o Brasil se tornou o principal destino de carcaças de tubarão sem barbatanas. Por ano, nosso consumo anual é de cerca de 45 mil toneladas.

As barbatanas são uma iguaria no mercado asiático e podem alcançar valores astronômicos — seu quilo pode ultrapassar US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8 mil).

Mas há pouca demanda pela carne de tubarão.

E, como a imensa maioria dos países proíbe a pesca do peixe apenas para o comércio exclusivo desse item — ou seja, retirando as nadadeiras e descartando a carcaça no mar (o chamado “finning”) — o que sobra do animal acaba tendo desembarque certo: o Brasil.

Curiosamente, o Brasil foi o primeiro país a assinar tratado ratificando a proibição dessa prática.

“O Brasil, maior importador mundial de carne de tubarão, compra carcaças e bifes de tubarão sem barbatanas de países que atuam no comércio de barbatanas, como China e Espanha, e do Uruguai, que exporta carne processada de tubarão”, diz o artigo.

“No Brasil, embora tubarões protegidos não possam ser legalmente comercializados por pescadores ou empresários locais, eles podem ser importados sem quaisquer restrições”.

“Além disso, é obrigatório fornecer informações para uma rotulagem adequada apenas se o peixe congelado importado pertencer à família Salmonidae (que inclui o salmão e a truta) ou à família Gadidae (que inclui o bacalhau e a arinca ou hadoque)”.

Segundo os pesquisadores, “apesar do crescente debate sobre a rotulagem incorreta de tubarões entre organizações não governamentais e comunidades acadêmicas, nenhuma medida governamental foi implementada”.

“Como resultado, os consumidores no Brasil continuam sem saber que estão comprando carne de tubarão e contribuindo para o declínio de espécies vulneráveis de tubarão”, afirmam.

Riscos para saúde
Rangel e Gil alertam ainda para o risco à saúde relacionado ao consumo da carne de tubarão.

“Como se trata de um grande predador, um animal topo de cadeia alimentar, o nível de toxicidade de sua carne é maior. Ou seja, existe um risco à saúde para quem come tubarão. E o pior: sem saber disso”, diz Gil.

Por um processo de bioacumulação, o tubarão agrega metais pesados, como mercúrio e arsênio, presentes nos organismos que lhe serviram de alimento. Ingeridas além da conta, essas substâncias podem causar danos cerebrais.

Um parâmetro de consumo de mercúrio vem da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ela preconiza o limite diário de 0,5 miligrama desse metal por quilo.

Estudo publicado em 2008, porém, revela que, em amostras de Prionace glauca, ou tubarão-azul, a espécie de tubarão mais pescada no mundo, o índice presente excedeu em mais de duas vezes o limite diário.

Não por menos, a Food and Drug Administration (FDA), agência federal americana que regula alimentos e medicamentos, não recomenda a inclusão de tubarão no cardápio de grávidas, de mulheres que estejam amamentando e de crianças, seja em que quantidade for.

Ação urgente
No artigo, os pesquisadores defendem uma “ação urgente em todo o mundo, especialmente no Brasil”.

“Como primeiro passo, o governo brasileiro deve divulgar amplamente o fato de que o cação pode se referir à carne de tubarão”.

“O país deve exigir que todos os produtos nacionais e importados sejam rotulados com seus nomes científicos em toda a cadeia de abastecimento, garantindo o monitoramento preciso das espécies no sistema e permitindo que os consumidores decidam se comem uma espécie em risco de extinção”.

“Como resultado de tais mudanças, a demanda provavelmente diminuiria, limitando o mercado de tubarões com barbatanas removidas ilegalmente. O Brasil também poderia proteger tubarões em todo o mundo proibindo a importação de espécies ameaçadas de extinção”.

“Por causa do papel descomunal do Brasil no comércio global de tubarões, essas mudanças podem melhorar muito os esforços de conservação”, concluem.

Fonte: BBC Brasil

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