Especialista em direito penal, Alamiro Velludo afirma que país dá muito peso à palavra da vítima
Preso desde sexta-feira em uma penitenciária a 40 km de Barcelona, Daniel Alves aguarda julgamento pela acusação de agressão sexual. Tradicionalmente, a Justiça espanhola é especialmente rígida em casos desse tipo.
Quem explica é Alamiro Velludo Salvador Netto, professor titular de direito penal da Universidade de São Paulo, além de ter feito pós-graduações na Espanha e na Itália. Em entrevista ao ge, ele analisou o caso Daniel Alves, as diferenças entre as leis contra crimes sexuais no Brasil e na Espanha e afirmou:
– A Justiça da Espanha tem uma tradição de ser bastante severa em casos assim.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Daniel Alves teve decretada uma prisão preventiva sem direito a fiança. Qual é a gravidade dessa decisão?
– A legislação espanhola especificamente prevê três hipóteses em que se pode prender a pessoa antes da condenação. Risco de fuga, que me parece que foi a situação utilizada no caso concreto, alteração de provas ou proteção da vítima. Na legislação espanhola, essa custódia ainda pode perdurar, por se tratar de um delito cuja acusação e pena são graves, por até dois anos. É uma legislação até mais dura que a própria legislação brasileira nesse sentido.
Que recursos podem ser apresentados pela defesa?
– Ele vai ser julgado na Catalunha, e na corte catalã ele vai poder apresentar recurso, um habeas corpus, com a finalidade de rever essa decisão proferida pela juíza da primeira instância. Pode ser determinada pelo tribunal a soltura ou pode ser mantida essa decisão. Ou pode, porque há previsão na legislação espanhola, haver verificação e imposição de alguma medida alternativa. Ou seja, a impossibilidade de deixar o país, uma prisão domiciliar, tudo isso é possível. A Espanha é uma democracia e, como tal, todas essas instâncias e todos esses recursos vão poder ser utilizados pela defesa.
A Espanha recentemente mudou sua lei para punir crimes sexuais. Como isso afeta o caso do Daniel Alves?
– A Espanha é um país muito importante de ser estudado nos delitos sexuais. Até porque sempre houve uma preocupação muito grande com o excessivo número de casos de agressões sexuais, de violência doméstica. Isso fez com que a Espanha alterasse a sua legislação, retirando uma figura mais branda de abuso sexual e tratando todas essas hipóteses de acusações de violência sexuais como efetivas agressões.
– Entretanto tem duas diferenças muito importantes de serem dadas na legislação espanhola se comparada com a legislação brasileira. A primeira delas é o fato de que aqui no Brasil nós tratamos as acusações, ou essa figura do crime sexual, sob uma perspectiva de ato libidinoso. O Código Penal brasileiro, pontualmente no artigo 213, afirma como estupro “constranger alguém mediante violência ou ameaça a prática de algum ato libidinoso” estabelecendo uma pena de 6 a 10 anos para essa figura.
– O código [penal] espanhol dá um tratamento um pouco diferente. Em primeiro lugar, estabelece uma figura genérica de agressão sexual, cuja pena é de um a quatro anos, pontualmente no artigo 178 do código. E trata logo no artigo subsequente, no 179, de uma figura de violência sexual, de atos invasivos. Ou seja, relações orais vaginais e anais cuja pena é de 4 a 12 anos. Portanto, uma pena mais alta, na máxima, do que a legislação brasileira. Essa distinção foi uma decisão importante feita pela legislação espanhola.
– E há uma outra questão muito importante, inclusive para o caso, que pode trazer uma consequência séria. A legislação espanhola, até para evitar o argumento das defesas de que aquela prática sexual foi consensual, resolveu estabelecer de maneira expressa qual é esse conceito de consentimento, dizendo que há consentimento quando a vítima pratica “atos expressos que demonstram uma manifestação muito clara e livre da sua vontade”. Então há um aperfeiçoamento jurídico desse conceito de consentimento. É algo que pode servir de exemplo para nós aqui no Brasil.
O fato de ser brasileiro pode gerar algum pedido para eventual cumprimento de pena no Brasil?
– Pode, mas é uma possibilidade excepcional. Como o delito foi cometido na Espanha, contra uma vítima espanhola, não há nenhuma determinação e não há nenhum sentido para que a Justiça brasileira se envolvesse e se imiscuísse nessa questão. Então é problema da Justiça espanhola. O Brasil não extradita os seus nacionais. Existe a possibilidade de o governo brasileiro impor aqui no Brasil, por equivalência, a pena que foi determinada no estrangeiro.
Os primeiros relatos sobre a prisão de Daniel Alves indicam que ele prestou depoimento sem a presença de advogados. Isso é normal?
– É estranho. Na Justiça espanhola, existe uma dinâmica um pouco diferente da Justiça brasileira, porque nós temos nessa fase pré-processual o chamado juízo de garantia. Então um juiz de direito controla os atos de investigação, inclusive esses depoimentos, e a imposição de medidas cautelares, uma delas – e obviamente a mais grave – é a prisão. E este não vai ser o juiz de um processo futuro de conhecimento, o processo do mérito. Até para que esse juiz que decretou as cautelares, de certa forma não pré-julgue e não fique comprometido com o próprio mérito, enfim, com a própria ocorrência que vai ser objeto de discussão posterior. Me parece estranho ele ter ido sem advogado. Isso não é comum. Agora, nós não sabemos. Quando a ata dessa audiência vier a público, saberemos se foi designado um defensor para ele naquele ato.
Quais são as próximas etapas do caso?
– De um lado, a defesa vai articular todos os recursos possíveis na legislação daquele país. Do outro, as investigações devem continuar. Existe uma série de perícias, de testemunhas que vão ter que ser ouvidos, e ao fim dessa investigação vai competir ao órgão responsável, ao Ministério Público Espanhol, apresentar uma acusação formal ao atleta. E a partir daí ele vai responder a um procedimento criminal, que ao fim, com todos os recursos, com todas as garantias, vai sentenciá-lo como culpado ou inocente.
Existe algum caso semelhante que possa servir como exemplo?
– Não há um caso específico, mas há uma tradição da Justiça espanhola de ser bastante rígida em acusações como essa. Ou seja, são acusações em que tradicionalmente a palavra da vítima é uma palavra muito importante, é uma palavra determinante. É sabido que nessas agressões sexuais raramente eu tenho testemunhas presenciais. Isso é feito às escondidas, entre quatro paredes. No caso desta acusação, diz que seria no banheiro de uma boate, em que isso aconteceu. E, se não há nenhuma justificativa muito plausível para que a vítima para estivesse inventando ou articulando essa história, a palavra da mulher é muito determinante. E é assim que tem que ser. Óbvio que aqui existe um fator diferenciado, que é uma repercussão muito grande. Nós estamos falando de um atleta que tem uma projeção mundial, acabou de ser convocado e de disputar uma Copa do Mundo. A TV, a mídia espanhola, está muito em cima desse caso. Foi um atleta que jogou por muitos anos num dos mais tradicionais clubes espanhóis, principalmente na Catalunha, que é o caso do Barcelona. Então imagino que nós vamos ter aí se comprovado, se mantida essa palavra que a vítima afiançou, uma condenação… a tendência é bastante severa.
Fonte: GE