Movimentos de luta por moradia ocuparam edifício localizado na Av. 9 de Julho em 2012. Quatro anos depois, local foi aprovado em edital do programa federal Minha Casa Minha Vida para construção de habitações de interesse popular.
Onze anos depois de ter sido ocupado por movimentos sociais, o edifício que abrigou o luxuoso Hotel Cambridge, no Centro de São Paulo, se tornou um condomínio de moradias populares com 121 apartamentos.
O prédio que, no início dos anos 2000, ficou conhecido por abrigar concorridas festas temáticas da noite paulistana é o mesmo que agora preserva, em sua versão residencial, aspectos originais da histórica construção de 17 andares, dois elevadores e área de lazer.
Nesta reportagem, você vai ler sobre:
A reforma e a preservação arquitetônica prédio onde funcionou o Hotel Cambridge;
Detalhes da estrutura do prédio que agora virou o Residencial Cambridge;
Relatos de proprietários dos novos apartamentos;
Transformação da chamada “vida em ocupação” para a “vida em condomínio”;
O imbróglio judicial envolvendo o edifício.
Veja, abaixo, um breve histórico do prédio do Hotel Cambridge:
Inaugurado na década de 1950, o edifício localizado na avenida 9 de Julho era composto por 119 acomodações de luxo, nas quais se hospedaram artistas internacionais.
Até 2002, funcionou como hotel; depois, passou a ficar aberto apenas o bar, espaço em que ocorriam baladas como a Trash 80’s (com trilha sonora e decoração inspiradas da década de 1980).
Em 2004, o local foi à falência, e o prédio acabou abandonado.
A Prefeitura de São Paulo desapropriou o local em 2011, após uma batalha judicial em razão das dívidas dos proprietários com o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
Em 2012, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) e a Frente de Luta por Moradia (FLM) ocuparam a antiga sede do hotel, que já estava tomada por insetos e roedores.
O prédio foi um dos selecionados para ser transformado em um conjunto habitacional de interesse social em 2016, por meio do programa do governo federal Minha Casa Minha Vida.
Em 12 de janeiro de 2023, os beneficiários assinaram contrato com a Caixa Econômica Federal, mas os primeiros proprietários haviam começado a chegar, gradualmente, em junho de 2022.
O Residencial Cambridge, após a reforma, tem:
85 quitinetes (com banheiro, cozinha e um cômodo que funciona como quarto e sala) e 36 apartamentos de um ou dois dormitórios;
Apartamentos adaptados para pessoas com deficiência (PCDs);
Câmeras de segurança em todos os 17 andares do prédio (térreo, mezanino, residenciais e laje).
O g1 esteve no local e conversou com alguns dos novos moradores, como a agente socioeducativa Vanessa Serra, de 27 anos. Primeira da família a ter uma casa própria, ela conta que parentes viam a ocupação como coisa de “vândalos” e “vagabundos”.
“Somos trabalhadores, somos lutadores. E está aqui a prova de que a gente luta para ter o que é nosso, não para tirar de ninguém”, diz Vanessa.
Preservação da arquitetura original
O MSTC, que coordenava a ocupação, sob a liderança de Carmen da Silva Ferreira, ficou responsável por contratar a construtora, acompanhar as obras e fazer o trabalho técnico-social com as famílias.
As obras tiveram início em 2018, quando as cerca de 120 famílias que ocupavam o antigo hotel tiveram de deixá-lo e ir em busca de lugares temporários para ficar. Algumas foram viver de aluguel, outras, na casa de parentes. A grande maioria, porém, se dividiu em outras ocupações do MSTC.
Para preservar a história e as memórias do Hotel Cambridge, a reforma foi realizada com a técnica retrofit, utilizada na restauração de prédios antigos, que mantém a arquitetura original do local, ao mesmo tempo em que promove adequações à legislação vigente.
Um exemplo disso são as escadas de mármore. Embora elas tenham sido mantidas, itens como corrimãos, iluminação e sinalização de emergência foram adicionados. Veja, abaixo, a comparação entre duas imagens: uma registrada pelo g1 em 2012, após a ocupação, e outra em 2023, depois da entrega dos apartamentos.
De acordo com a Caixa, o valor investido pela União na construção foi de R$ 14,1 milhões. Carmen da Silva Ferreira afirma que a quantia não acompanhou a inflação registrada ao longo do período de reforma e que a alta no preço dos materiais de construção teve de ser bancada pelos próprios moradores.
Segundo a coordenadora do MSTC, a seleção das famílias que seriam beneficiadas com as unidades habitacionais foi feita com base em critérios do próprio movimento (como envolvimento na luta por moradia) e da Caixa (como faixa de renda, documentação em dia e ausência de dívidas com bancos públicos).
A síndica do condomínio, Romenia Malaquias de Freitas, diz que os moradores tiveram participação ativa no processo. Para a escolha de materiais, por exemplo, três opções eram levadas em assembleia, e prevalecia a vontade da maioria.
Residencial Cambridge
Logo na entrada, no saguão onde ficava o bar do Cambridge, uma parede de pedras contrasta com a simplicidade do branco uniforme que cobre as demais. Ali, há dois vasos de plantas, além de um sofá e de uma mesinha marrons.
No térreo, há uma sala para a síndica, enfermaria, bicicletário e refeitório para os funcionários do condomínio. Também há contêineres para coleta seletiva – algo que tem sido trabalhado com os moradores – e espaço para a plantação de uma horta, o que Carmen, líder do MSTC, pretende fazer em breve.
No andar de cima, o mezanino, uma brinquedoteca está sendo montada, aos poucos, com doações de livros e brinquedos.
A laje do prédio é dividida em duas partes, uma voltada para a Av. 9 de Julho e outra para a R. Álvaro de Carvalho – ambas serão dedicadas ao lazer dos condôminos.
Num lado, pretendem fazer um pequeno salão de festas e instalar um chuveirão para que as pessoas se refresquem durante o calor; do outro, um espaço para churrasqueira e forno de pizza. Mas esses são planos futuros, uma vez que ainda é necessário arrecadar a verba que será destinada para colocar tais ideias em prática.
Os 121 apartamentos estão localizados entre o 1° e o 14° andar do edifício. Desses, 85 são do tipo quitinete (com banheiro, cozinha e um cômodo que funciona como quarto e sala) e 36 são de um ou dois dormitórios. Todas as unidades foram equipadas com tanque de lavar roupa, box de banheiro, pias, torneiras, venezianas e tela de proteção nas janelas. O piso original de taco de madeira foi mantido.
Apartamentos que de numeração com final 5 de cada andar são adaptados para pessoas com deficiência. Nessas unidades, por exemplo, o tamanho das portas é maior e há barras de apoio no banheiro. Caso não haja PCDs na família a que foi atribuída a uma dessas unidades, os equipamentos de acessibilidade podem ser removidos.
Todos os 17 andares do prédio (térreo, mezanino, residenciais e laje) têm câmeras de segurança, alarmes de incêndio, extintores e mangueiras de combate às chamas, e sinalização de emergência. Carmen, a líder do movimento, se orgulha ao falar sobre o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) obtido pelo edifício.
Os elevadores são itens valorizados pelos moradores. Em 2012, quando ocuparam o prédio, havia três equipamentos do tipo, mas nenhum deles funcionava. Romenia, a síndica, conta que chegou a morar no 13º andar e quando precisava buscar algo no térreo, brincava dizendo “eu vou, só não garanto que volto em cinco minutos”, já que precisava descer e subir de escada.
Atualmente, o condomínio tem dois elevadores em funcionamento. Segundo Carmen, esses foram os primeiros itens adquiridos na obra.
Novos proprietários
A diarista Maria Auxiliadora de Siqueira Silva, de 58 anos, estava há 14 anos na espera por uma moradia, período no qual viveu entre ocupações e pagamento de aluguéis. Participante ativa nas assembleias e demais atividades do MSTC, ela conta que chegou a ouvir de parentes que “aquilo tudo era coisa para desocupado, como ela”. Até o próprio marido a desencorajava.
Com o contrato da casa própria assinado, Maria agora sorri. Mas depois fica com a expressão mais séria ao relembrar a luta que antecedeu o momento atual. Ela diz que, apesar de ter enfrentado muitos desafios, faria tudo de novo.
Selma de Jesus Oliveira, de 48 anos, é costureira e tem uma barraca de acarajé que arranca elogios de seus conhecidos. Residente na então Ocupação Hotel Cambridge e atual proprietária de um dos apartamentos do residencial, ela fala com orgulho sobre a conquista da casa própria, que, no quesito emoção, perde só para o nascimento do primeiro filho.
“Acho que eu nunca consegui uma coisa que eu desejava tanto. Você ter [essa coisa] ali, na sua mão… acho que foi o dia mais feliz da minha vida”, contou Selma, com os olhos brilhando.
“Eu posso levar para a história e mais tarde, lá velhinha, contar para os meus netos, meus bisnetos: ‘Olha, eu entrei numa luta de moradia que ninguém dizia que ia dar certo, ninguém tinha uma certeza’. Vários desistiram, foram embora e hoje muitos deles se arrependem”, disse a costureira.
No 13° andar do edifício mora a agente socioeducativa Vanessa Serra, de 27 anos. Primeira da família a conquistar a casa própria, ela diz que a ficha ainda não caiu. Ela conta que seus parentes tinham uma visão distorcida da ocupação, que viam o movimento como coisa de “vândalos” e “vagabundos”, mas que agora pode mostrar sua legitimidade.
“Somos trabalhadores, somos lutadores. E está aqui a prova de que a gente luta para ter o que é nosso, não para tirar de ninguém”, disse Vanessa.
A jovem moradora se emociona ao falar do orgulho que é ter um lar para chamar de seu, uma cama na qual colocar a filha pequena para dormir. Ela também comenta o alívio que é não ter de se preocupar com risco de despejo. Porém, mesmo com seu teto garantido, Vanessa diz que seguirá na luta por moradias populares.
“A luta não é sozinha, é uma luta coletiva. Não é porque a gente recebeu a nossa moradia que a gente para a luta. A luta não é isso. O movimento, o que ele constrói, é uma luta contínua para ajudar outras pessoas que estão nesse processo”, afirmou a agente socioeducativa.
Vida nova
A transformação da chamada “vida em ocupação” para a “vida em condomínio” tem sido trabalhada com os moradores pela assistente social do MSTC, Márcia de Fátima Araújo.
Desde o período da reforma, ela tenta conscientizar os novos proprietários quanto aos gastos individualizados com água, luz, gás e internet, assim como as questões da geração de renda, planejamento financeiro e endividamento. “Essa família tem que ter autonomia”, disse Márcia. “Não dá para fantasiar que vai ser de graça.”
Segundo Carmen, a individualização foi priorizada nesta nova etapa para garantir a autonomia de cada núcleo familiar.
“A moradia é social, mas a proporção do que as pessoas querem para seu bem viver é tudo pago, não é social. Isso vai de acordo com o seu consumo. Quanto mais uma pessoa quer ter bem-estar, mas ela vai pagar por isso”, explicou.
Hotel e ocupação
Inaugurado na década de 1950, o Cambridge era composto por 119 acomodações de luxo, nas quais se hospedaram artistas internacionais. Funcionou como hotel até 2002, deixando aberto somente o bar, onde eram realizadas festas temáticas. Em 2004, o lugar foi à falência, e o edifício acabou abandonado.
Com dívidas de IPTU, os proprietários tiveram o prédio desapropriado pela Prefeitura de São Paulo, em 2011, por cerca de R$ 6,5 milhões.
Durante a ocupação, o movimento foi alvo de inquérito policial e denúncia do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) após ex-membros terem acusado a liderança de praticar extorsão contra os moradores do prédio.
O caso foi arquivado em 2019 pela Justiça, que considerou as provas conflitantes e insuficientes.
Fonte: G1