Ativistas dizem que a política do governo Donald Trump causou danos irreparáveis às famílias de migrantes.
Jose Luis Martinez ainda se lembra dos gritos das três filhas depois que as autoridades de fronteira dos EUA as separaram dele e o enviaram para um centro de detenção.
“Elas estavam chorando sem parar”, diz ele. “A mãe delas já havia morrido. Tudo o que eles queriam era o pai. Eu era a única coisa que elas tinham.”
Era pouco depois de meia-noite de 2 de novembro de 2018. Martinez e as filhas tinham percorrido mais de 3.200 quilômetros de ônibus desde seu país natal, Honduras, em uma viagem de 15 dias até a fronteira do Texas, na tentativa de entrar nos EUA para pedir asilo. As meninas tinham, na época, 10, 12 e 14 anos.
Durante um mês, Martinez perguntou repetidamente às autoridades americanas quando poderia ver suas filhas novamente. Ele não teve respostas.
O governo americano acabou deportando Martinez de volta para Honduras, alegando que ele havia entrado ilegalmente nos Estados Unidos.
Ele teve que esperar quase quatro anos para finalmente reencontrar as filhas nos Estados Unidos, onde elas estavam morando com a mãe dele e a irmã.
“Elas me ligavam e diziam: ‘Papai, papai, por que você voltou? E eu tive que dizer a elas que fui deportado’, conta Martinez à BBC. “Foi muito difícil.”
Entre 2017 e 2021, o governo do ex-presidente Donald Trump separou pelo menos 3,9 mil crianças — algumas com apenas alguns meses de vida — dos pais ao longo da fronteira dos EUA com o México, sob o que chamou de política de “tolerância zero”.
A política tinha como objetivo desencorajar migrantes de entrar nos Estados Unidos e permitia que o Departamento de Justiça processasse e deportasse adultos que cruzassem a fronteira ilegalmente, colocando seus filhos sob custódia do governo.
As crianças, principalmente da Guatemala, Honduras e El Salvador, passaram dias em centros de detenção, onde algumas foram amontoadas em uma espécie de “jaula” de metal, sem acesso a banho e alimentação adequada.
Centenas de crianças tiveram que esperar anos, algumas mais da metade de suas vidas, nos Estados Unidos, em lares adotivos e com parentes e amigos antes de verem sua família imediata novamente.
O presidente dos EUA, Joe Biden, rescindiu oficialmente a política de tolerância zero poucos dias após assumir o cargo. Um mês depois, ele criou a Força Tarefa de Reunificação Familiar para desfazer o que chamou de “vergonha moral e nacional” das separações.
Anteriormente, a maioria dos pais era forçada a escolher entre ter o filho de volta para morar com eles no país de onde haviam fugido ou deixá-los para trás nos Estados Unidos. Mas sob a nova política do governo Biden, pais que foram deportados, como Martinez, foram autorizados a reencontrar os filhos nos Estados Unidos e a permanecer no país por três anos.
Em março de 2023, o governo americano informou que 2.969 crianças que haviam sido separadas dos pais durante o governo Trump foram reunidas com seus familiares nos EUA, incluindo algumas que foram reunidas durante o mandato de Trump.
Mas no aniversário de cinco anos do dia em que a política foi anunciada, aproximadamente 1.000 crianças ainda estão esperando esse momento, segundo o governo dos EUA.
Ativistas dizem que o governo Trump não manteve bancos de dados ou registros minuciosos vinculando as informações dos pais aos filhos, o que várias reportagens da revista The Atlantic, da rede NBC e outros veículos de comunicação também revelaram.
Como resultado, a equipe de Biden herdou um “desastre”, diz Lisa Frydman, vice-presidente de programas internacionais da Kids In Need of Defense (KIND), outra organização envolvida em entrar em contato com as famílias de migrantes.
Reunindo quem foi separado
Grupos sem fins lucrativos dentro e fora dos EUA entraram em cena para ajudar no que pode ser comparado a uma caça internacional a pessoas desaparecidas, com poucas pistas e muito sofrimento em jogo.
Munidas às vezes apenas de números de telefone desatualizados, as organizações de vez em quando enviam profissionais de direitos humanos a aldeias remotas em países da América Central à procura dos pais das crianças.
“Tem sido perigoso, demorado, exige muitos recursos e foi muito mais difícil durante a Covid”, conta Lee Gelernt, do Projeto Nacional de Direitos dos Imigrantes da American Civil Liberties Union, uma das várias organizações que lideram esforços para ajudar a contatar as famílias.
Quando grupos baseados nos Estados Unidos precisam de apoio local, eles chamam pessoas como Rebeca Sanchez Ralda, uma advogada da Cidade da Guatemala e ativista de direitos humanos da Justice In Motion.
Ela e seus colegas de trabalho passam horas vasculhando registros civis e perfis do Facebook para encontrar pistas do paradeiro dos pais — às vezes, com apenas um sobrenome comum para ir atrás.
Muitas das pessoas que eles procuram vivem em locais remotos e falam línguas indígenas que os profissionais americanos não falam com frequência. Quando os ativistas de direitos humanos acham uma pista, a jornada pode ser longa e complexa. Sanchez Ralda disse que passou manhãs inteiras caminhando em estradas traiçoeiras para chegar a comunidades isoladas.
Quando ela finalmente localiza os pais que tiveram seus filhos levados embora, eles geralmente não acreditam de cara que poderiam recuperá-los. Muitos pais, diz ela, desenvolveram uma profunda desconfiança em relação ao governo dos Estados Unidos e têm receio de receber ajuda.
Mas quando as famílias que conseguem se reencontrar, é uma alegria, acrescenta ela. “Muitos deles nunca pensaram que os veriam novamente”, afirma.
Organizações sem fins lucrativos localizaram cerca de 1,5 mil famílias desde 2018, estima Gelernt.
Mas alguns ativistas disseram à BBC que estavam preocupados que as decisões relacionadas à política de imigração dos EUA pudessem levar a mais separações de famílias.
O governo Biden tomou uma série de medidas para tentar impedir o fluxo de migrantes ilegais na fronteira, especialmente diante da expectativa do término da política Title 42 do governo Trump, que deu ao governo o poder de expulsar automaticamente migrantes sem documentação para seu país de origem ou o último país em que estiveram — na maioria das vezes, o México.
Em fevereiro, por exemplo, a equipe de Biden disse que consideraria “inelegíveis” para asilo os migrantes que não tentassem buscar asilo no primeiro país pelo qual passaram a caminho da fronteira com os Estados Unidos, com pouquíssimas exceções. Além disso, os migrantes flagrados cruzando ilegalmente serão impedidos de entrar novamente nos EUA por pelo menos cinco anos.
Depois, o jornal americano “New York Times” informou em março que o governo Biden estava considerando restabelecer em maio uma prática da era Trump de deter famílias migrantes com os filhos se eles entrassem nos EUA ilegalmente, uma medida que Biden suspendeu ao assumir o cargo.
Embora a prática seja diferente da política de tolerância zero de Trump, os ativistas estão preocupados que isso possa levar a separações familiares, à medida que pode motivar os pais a enviar seus filhos para a fronteira sozinhos, já que menores desacompanhados podem ser libertados da custódia do governo para viver com familiares ou outros patrocinadores nos EUA.
“A implementação desta política seria desastrosa”, afirma Jennifer Podkul, vice-presidente de política e defesa da KIND.
A Casa Branca não respondeu a um pedido de comentário sobre se estava considerando a medida.
‘Como um sequestro’
Os líderes das organizações sem fins lucrativos argumentam que muito mais trabalho precisa ser feito para ajudar as famílias a se recuperarem do trauma da separação.
Alguns pais que tiveram que deixar seus filhos nos EUA tentaram suicídio, atormentados pela culpa e desorientação em relação a por que seus filhos foram tirados deles, diz Cathleen Caron, fundadora da Justice in Motion, organização de direitos de migrantes que atua no México e no norte da América Central.
No caso das crianças, ela acrescenta, resulta em pesadelos e “traumas profundos”.
Algumas, que tinham apenas um ano de idade quando foram separadas, nem sequer se lembram dos pais quando se reencontram, diz Gelernt. Ele se recorda de um menino de quatro anos, uma das primeiras famílias que a ACLU ajudou a reunir, que ficava perguntando aos pais se alguém iria levá-lo embora no meio da noite.
Outros agora se recusam a falar suas línguas ou a comer a comida que suas famílias preparam para eles, afirma Sanchez Ralda.
“As pessoas não têm ideia do dano que isso causou”, ela acrescenta. “Foi como um sequestro.”
Os ativistas dizem que as famílias precisam de mais apoio financeiro e jurídico do governo dos EUA para ajudá-las a se recuperar uma vez reunidas com seus filhos nos EUA, já que muitas não têm acesso a moradia consistente.
Em 2021, o governo Biden estava negociando com as famílias o pagamento total de até US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,99 bilhões) em indenizações pelas separações, em resposta a um processo separado movido pela ACLU, mas essas discussões foram interrompidas após a reação dos republicanos.
E embora a força-tarefa de Biden tenha reunido famílias, a condição de permanecer por apenas três anos nos EUA as deixa em uma situação precária, observa Caron. Segundo ela, algumas famílias podem enfrentar a deportação após esse período ou a possibilidade de outra separação familiar, se os filhos conseguirem estabelecer uma maneira de permanecer no país enquanto seus pais são deportados.
“Quando você não sente que está seguro, é muito difícil se recuperar”, diz Caron.
Misto de dor e alegria
Para Martinez, de 54 anos, a jornada para reencontrar as filhas — agora com 14, 16 e 18 anos — se revelou um misto de dor e alegria.
“Fiquei muito feliz em saber que poderia estar lá e que poderia pelo menos começar a ajudá-las desde o momento que cheguei, mas também foi muito doloroso por tudo que sofremos”, afirma.
Para as meninas, a notícia de que veriam o pai novamente gerou uma felicidade pura e incontrolável, segundo sua ex-advogada, Anilu Chadwick.
“Elas começaram a chorar e gritar. Eu queria gritar também”, diz ela. “A sensação de alívio foi instantânea.”
Martinez e as filhas agora moram com a mãe dele e a irmã dele na cidade de Nova York. Ele conta que sonha em construir uma casa para eles em Honduras um dia, para que todos possam ter um lugar para ficar juntos lá também.
Ele afirma que depois de quatro anos longe das filhas, suas personalidades gentis e amorosas não mudaram. Mas a dor do tempo que passaram separados deixou, segundo ele, uma marca permanente.
“É incurável”, diz ele. “Isso nunca vai desaparecer. Vai permanecer no coração de cada uma delas.”
Fonte: G1