Pastoral Afro-Brasileira: o pensamento de Frantz Fanon e a nova Lei de Injúria Racial

Igreja

A Pastoral Afro-Brasileira da Região Episcopal Brasilândia, da Arquidiocese de São Paulo, SP, coordenada pelo Cônego padre José Renato Ferreira, se reuniu na Paróquia Santa Rosa de Lima, em Perus, SP, para dar continuidade ao processo formativo. O evento contou com a participação de leigos, leigas, religiosos e religiosas, sacerdotes e, também, com a presença do Bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo para a Região Episcopal Brasilândia, Dom Carlos Silva

A Pastoral Afro-Brasileira da Região Episcopal Brasilândia, da Arquidiocese de São Paulo, SP, coordenada pelo Cônego padre José Renato Ferreira, se reuniu na Paróquia Santa Rosa de Lima, em Perus, SP. Na abertura do evento, dom Carlos Silva fortaleceu a importância da missão da Pastoral Afro-Brasileira. “É uma pastoral que me impressionou, como bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo para a Região Episcopal Brasilândia, por ser uma região pobre, preta, de trabalhadores de periferia. O mais bonito é que existem organizações, pastorais e ou outras manifestações que resgatam, além da fé, a cultura e que dá visibilidade”, afirmou.

Dom Carlos acrescentou, ainda, que a Igreja tem cara, cor e CPF e que esses pequenos encontros são animadores da esperança e fazem acreditar que vale a pena seguir caminhando deixando marcas, perspectivas para aqueles que vierem. “As nossas comunidades são negras e a participação na vida da comunidade, na liturgia, dão beleza e evidência ímpares e manifesta o que de fato somos: uma Igreja que tem cara, CPF, cor”. E parafraseou dom Paulo Evaristo Arns: De esperança em esperança, esperança sempre”.

O negro na sociedade: Pele negra, máscaras brancas. Reflexões antropológicas
O encontro teve como temas formativos ‘O negro na sociedade. Pele negra, máscaras brancas – reflexões antropológicas, sob assessoria da teóloga e jornalista, a missionária scalabriniana Irmã Rosinha Martins e o estudo sobre a lei LEI Nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023, a nova Lei de Injúria Racial, assessorado pela advogada dra. Cleusa Lincol Martins membro da Pastoral Afro Brasileira da Diocese de Osasco e dr. Sinvaldo José Firmo, do Instituto do Negro Padre Batista.

Pele negra, máscaras brancas, o livro do martinicano e psiquiatra negro, Frantz Fanon, é, segundo Irmã Rosinha Martins, o clássico que precisa se tornar o livro de cabeceira das pessoas negras no mundo atual.“ O livro, que foi escrito por Fanon a partir de pesquisas de campo, de atendimento clínico a pessoas negras da sua época, além de deixar evidente os efeitos da colonização na vida e na psiquê do colonizado, propõe saídas para o negro enfrentar o racismo: reafirmar sua essência e seu corpo, fazer uso da razão na luta pelos seus direitos e ainda, fazer valer a sua essência como ser humano para além da cor da pele.

“Para Fanon, é o Branco que cria o Negro” (FANON, 1968) ao desconsiderar sua humanidade, considerando-o um não-ser, sem lugar na humanidade, fazendo-o “objeto em meio a outros objetos”, aprisionando-o naqueles referenciais “fetichizados” que o ocidente deixou de reconhecer em si. Desta forma a sociedade colonizadora (o ocidente), só enxerga no negro o sensual, viril, lúdico, colorido, infantil, banal; o mais próximo possível da natureza (animal) e distante da civilização, do ser, da razão. Ou seja, é o branco que cria o negro, o inferioriza e vale dizer, o racista luta para que o negro permaneça nesse lugar que não é dele (o não-lugar), e jamais seja considerado ser, em essência, humano”, afirma Irmã Rosinha.

Entre outras sugestões advindas de “Pele negra, máscaras brancas”, Irmã Rosinha convocou a comunidade negra presente a lutar contra o racismo e para tal é necessário que a razão sobreponha a emoção. “Precisamos falar de igual para igual com o branco, à mesma altura, porém, com ternura que gera autoridade, sem nos inferiorizarmos. Precisamos nos apropriar dos poderes da cultura afro milenar (recordemos Egito, recordemos, a música gospel norte americana, recordemos a origem do rock, de onde vem o Blues, o samba, algumas descobertas espaciais, da NASA, etc). Somos uma nação forte, inteligente, poderosa. Chega de racismo. Já deu. É hora de darmos visibilidade à potência que somos num país de maioria (56% da população) negra”.

A linguagem como instrumento de dominação colonial. Angu não é polenta. Polenta não é angu
Irmã Rosinha enfatizou o pensamento de Fanon sobre a linguagem como instrumento de dominação no período colonial. Ao tratar do fenômeno da linguagem e da colonialidade, Fanon se referia à relação entre o francês falado pelo branco colonizador e o francês e crioulo falados pelos sujeitos afrodescendentes martinicanos.

Para Fanon, imitar a língua do branco, era uma forma de favorecimento de uma desigualdade racial construída e levada até ali pelo humanismo e colonialidades centradas na branquitude. Isso porque “falar é existir completamente para o outro” (Fanon 2008, p. 33).

Segundo Irmã Rosinha, “o racismo contemporâneo à brasileira, sutil, disfarçado, doentio, violento e assassino, tem suas raízes no período colonial, no qual se fez desaparecer os corpos negros e indígenas, sua linguagem, sua cultura, sua religiosa sobrepondo o corpo branco marcadamente europeu, sua linguagem, sua religiosidade, seu modo de ser, de comer, de rezar, de se vestir, etc..”

A jornalista citou um exemplo de como, de maneira sutil, o racismo se manifesta e se reafirma por meio da imposição da língua e cultura europeia. “Por exemplo, a polenta é um prato italiano, que os italianos rememoram com carinho do tempo da guerra, no qual lhes faltavam recursos alimentícios, logo faziam a polenta, a qual cortavam com a linha. A polenta também faz parte da cultura paulistana devido aos inúmeros imigrantes vindos da Itália que aqui adentraram.

Do outro lado, os africanos escravizados, já haviam trazido para a capital paulistana e para outros Estados, o angu, comida típica da África que se cozinha sem pressa, sem sal, uma delícia da culinária africana. Logo, é equívoco dizer que polenta é angu. Não é. O negro que faz angu, o carrega de simbolismos, de memória afetiva, a partir da sua história africana. O que queremos dizer é que não se pode sobrepor a polenta ao angu e vice-versa, porque cada uma dessas delícias das culinárias africana e italiana tem suas características próprias e são carregadas de sentido.
Para o negro na sociedade atual, continua Rosinha, o angu, dentre tantos elementos da cultura africana (a fé, os orixás, expressões linguísticas, a dança, o corpo, o cabelo, a ginga, a própria culinária com suas particularidades), se tornam instrumentos políticos de luta. Retomar a língua e a linguagem africana, se orgulhar da própria cultura e dar visibilidade a ela se torna necessário diante do racismo à brasileira”. Para além da polenta e do angu, poderíamos citar tantos exemplos de inferiorização da língua, no caso, a linguagem africana no Brasil de hoje, mas também da linguagem dos povos originários, apagada, invisibilidade. Precisamos ficar atentos para que não sejamos, como pessoas negras, colaboradores, também da imposição linguística, favorecendo a continuidade do racismo estrutural em nossas vidas e na sociedade”, enfatiza.
Para o pesquisador Gabriel Nascimento dos Santos, cometer racismo linguístico é racializar através da linguagem. E a racialização é uma denominação do colonizador que durante o processo faz existir raças (negros, indígenas, etc).
A nova Lei de Injúria Racial. O preço do desrespeito ao negro/a brasileiro/a
A Nova Lei de Injúria Racial, altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prevê pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prevê pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.
A Lei aprofunda a ação de combate ao racismo, porque cria elementos para interpretação dos contextos e evidencia algumas modalidades de racismo que não estavam em evidência, mas sob disfarce. Por exemplo, a agressão a atletas, juízes, torcedores e torcidas, em um ambiente de prática de esportes, é compreendido como racismo esportivo. Como, também, o deboche ou as piadas ofensivas disfarçadas de humor caracterizam o racismo recreativo.

Os advogados Cleusa Lincol Martins e Sinvaldo José Firmo, aprofundaram a Lei nº 14.532/2023, de 11 de janeiro de 2023, sancionada pelo presidente Lula, que equipara a injúria racial ao crime de racismo e publicada em edição extra do Diário Oficial da União.

“Com essa Lei a injúria não é mais considerada um pequeno delito. Antes, as pessoas injuriavam e ao chegar à delegacia o delegado arbitrava o valor de uma fiança, por ser um crime cuja pena era menor que 4 anos de reclusão. Uma vez paga a fiança, o criminoso era liberado para responder, pelo ato, em liberdade. Com a nova redação dada à Lei, descrevendo pena de 2 a 5 anos de reclusão, o delegado não mais arbitrará fiança, permanecendo a pessoa agressora aos cuidados do Estado, em reclusão”, afirma a dra. Cleusa Lincol.

Ainda segundo a advogada, “o Artigo 1º, Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), passa a vigorar com as seguintes alterações: Art. 2º- Ao injuriar alguém, ofendendo a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, a pena será reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. O Parágrafo Único do mesmo artigo reza que a pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”

A mudança na Lei prevê pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística, como também a ‘proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso (§ 2º-A)’ e, será aumentada de 1/3 até a metade se racismo praticado por funcionário público no exercício de suas funções, e, também, para o racismo religioso e recreativo.

Lincol acrescenta, também, que à luz da Constituição Federal, a Injúria Racial passa a ser crime inafiançável e imprescritível, conforme o artigo 5º, inciso XLII que afirma que ‘a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei’.

O advogado, Dr. Sinvaldo José Firmo enfatizou o papel da polícia e do Ministério Público no combate ao racismo, os quais segundo ele ainda deixam muito a desejar. Apesar das dificuldades, é importante que as pessoas jamais desistam e denunciar o crime de racismo e quando forem ou verem alguém sendo discriminada, denunciem e procurem ajudar e orientar a vítima”, afirmou.
O que fazer ao sofrer racismo
A Dra. Cleusa Lincol orienta de forma precisa sobre como proceder em casos de racismo. “Se alguém tiver que passar pelo horror da agressão do racismo, é muito importante que no ato da discriminação observe as características do local, procure identificar a pessoa agressora (características pessoais, nome, apelido, endereço, fone…), reúna provas (pessoas que tenham testemunhado o fato, fotos, filmagens, facebook, instagram, conversas pelo whatsApp, câmera de segurança, o número da viatura que está no local ou lhe fez a abordagem… o que for possível), para comparecer a uma delegacia de polícia,- sempre acompanhada/o sempre por um/a advogado/a -, e formalizar o Boletim de Ocorrência (BO) como, também, posterior instauração do Inquérito Policial. O Boletim de Ocorrência (BO) poderá ser feito em qualquer delegacia de polícia de sua cidade”.

De acordo com Cleusa, na cidade de São Paulo existe a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) como, também, em outros Estados e cidades brasileiras, delegacias especializadas ou órgãos recebedores de denúncias. A DECRADI atende de 2ª. a 6ª. feira entre 9h00 e 18h00, localizada na Rua Brigadeiro Tobias, n° 527, 3° andar, na Luz, centro, São Paulo (11) 3311-3555 e o e-mail decradi@policiacivil.sp.gov.br

A denúncia também poderá ser realizada junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de sua cidade, Ministério Público de sua cidade, Defensoria Pública de sua cidade, Disk 156 ou Disk 100.

Pastoral afro-brasileira
De acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Pastoral Afro-brasileira nasceu da necessidade de dar uma organicidade às diferentes iniciativas dos negros católicos que marcam presença na vida e missão da Igreja. Também é fruto da consciência das necessidades que vão surgindo a partir do aprofundamento do compromisso com a caminhada das comunidades negras. A Pastoral é compreendida como zelo apostólico para como o povo, sobretudo para com os povos pobres e os abandonados. Assim, as diversas iniciativas dos negros católicos encontram na pastoral afro-brasileira um espaço de reflexão, articulação e diálogo voltados para a vivacidade e dinamicidade da ação evangelizadora da Igreja (Cf. DA, n. 97). A Pastoral afro-brasileira integra a Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz e as demais Pastorais Sociais da CNBB e tem um Bispo como referencial, que atualmente se trata de Dom Zanoni Demettino Castro. Existem outros grupos de ação que estão ligados à pastoral afro-brasileira.

Fonte: Vatican News