A brasileira que sequestrou um avião acompanhada de dois filhos pequenos durante a ditadura

Brasil

Marília Guimarães tinha apenas 22 anos em 1º de janeiro de 1970, quando adentrou o Aeroporto Internacional de Carrasco, em Montevidéu, determinada a embarcar no voo 114 da Cruzeiro do Sul com destino ao Rio de Janeiro – uma viagem que, ela já sabia, mudaria radicalmente sua vida, para o bem ou para o mal.

Acompanhada dos filhos Marcelo e Eduardo, então com 3 e 2 anos, Marília estava carregada de bolsas com fraldas, mamadeiras e brinquedos, além das bagagens. Por baixo do vestido que trajava, levava ainda, colados ao corpo, seis revólveres.

A jovem professora fazia parte de um grupo de seis guerrilheiros – ou terroristas, como preferia a ditadura militar vigente – de um movimento de esquerda radical contrário ao regime. O objetivo dos seis era sequestrar o avião Caravelle e levá-lo para Cuba, onde Marília e os dois filhos poderiam viver em liberdade.

Lições para o Rio de uma década de presença militar nas ruas do México
Indústria, educação, TI: confira quem está pagando mais aos recém-contratados
Há um ano na clandestinidade com as duas crianças pequenas, Marília dormia a cada noite em um lugar diferente para despistar os militares. A captura de uma aeronave era a única saída que ela conseguia vislumbrar para voltar a ter uma vida normal. Naquele momento, a ideia não parecia mais perigosa do que vagar sem rumo com os meninos sob a ameaça constante da prisão e da tortura.

“Quando você já está no perigo, tem uma força que nem sabe de onde vem”, explica. “É como parir: chegou a hora, vai doer, mas não tem outro jeito.”

A bagunça que os meninos faziam no saguão do aeroporto era tanta que acabou concentrando a atenção de policiais e funcionários do aeroporto. O embarque ocorreu sem nenhum problema – na época, não havia detector de metais no terminal de Montevidéu.

“Ironicamente, os policiais estavam tomando conta das crianças”, lembra Marília.

Além dela e das duas crianças, embarcaram Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, o primeiro marido da ex-presidente Dilma Rousseff, James Allen da Luz, o comandante da ação, Athos Magno Costa e Silva, Isolde Sommer e Luiz Alberto da Silva.

Enquanto os passageiros ajeitavam as bagagens e se sentavam, Marília distribuiu as armas entre os companheiros. Assim que o avião levantou voo, o sequestro foi anunciado. “Vamos para Cuba”, asseverou James, lendo, em seguida, um manifesto político, em que explicava os motivos da ação.

O que os guerrilheiros não sabiam era que aquela aeronave estava com uma turbina defeituosa e só tinha autonomia de combustível para duas horas de voo, o que complicaria muito os planos de pousar na ilha de Fidel Castro ainda naquele dia.

‘Só pensava em Che Guevara’

Formada em Letras, Marília era dona de uma escola no bairro de Coelho Neto, no subúrbio do Rio, perto da Favela de Acari. Embora o colégio de fato atendesse 800 alunos, entre eles muitos bolsistas da comunidade carente próxima, ele também servia de fachada para reuniões clandestinas da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e para fazer cópias de panfletos políticos no mimeógrafo.

As coisas começaram a fugir do controle quando o equipamento, na época das férias escolares, foi levado para a casa de um companheiro que acabou sendo preso em fevereiro de 1969. Os militares não levaram muito tempo para ligar o mimeógrafo à escola, exigindo explicações.

Marília chegou a ser presa por 72 horas e interrogada ininterruptamente.

“Eu só pensava em Che Guevara”, ela lembra. “Pedia forças a ele para não fraquejar, para não deixar que os militares vissem a verdade nos meus olhos.”

Acabou sendo liberada. Sozinha, com dois meninos pequenos para criar e correndo o risco de ser presa novamente a qualquer momento, ela decidiu abandonar tudo e cair na clandestinidade.

“Eu e as crianças dormíamos cada dia em um lugar diferente, dentro de carros, na estrada, na favela, na casa dos outros”, relembra. “A única solução era sair do país, mas eu sabia que era quase impossível; não tinha documentos, não tinha passaporte, era procurada em tudo o que é lugar e era um alvo fácil: uma mulher com duas crianças.”

“Eles (os guerrilheiros) viviam em desespero político e psicológico diante tanto das questões políticas quanto das humanas, com os companheiros presos, sendo torturados”, explica o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“E a opção de cair na clandestinidade é muito definitiva, você abandona sua casa, seus parentes, pai, mãe, amigos, e vive na iminência de ser preso, é uma opção muito dramática na vida.”

O plano
Depois de quase um ano, o VPR determinou que era hora de tirá-la do Brasil a qualquer custo. O plano era, com a ajuda dos tupamaros, um grupo guerrilheiro do Uruguai, sequestrar um avião de passageiros em Montevidéu e seguir para Cuba.

O sequestro de aviões foi uma arma muito utilizada naquele período de recrudescimento da ditadura, bem como o de diplomatas estrangeiros. O objetivo era forçar a libertação de companheiros presos e torturados, dar fuga aos perseguidos políticos e, claro, chamar a atenção do mundo para o que acontecia no país.

“Sequestros de diplomatas e aviões foram atitudes desesperadas numa fase em que a própria luta armada não seria mais vitoriosa; resistia por inércia revolucionária e para libertar seus companheiros”, explica Carlos Fico.

Vale recuperar o contexto histórico da época, em que uma ditadura violenta, como todas as ditaduras, exercia a tortura como política de Estado, nas palavras do historiador Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Do outro lado, um pequeno conjunto de guerrilheiros imaginando, equivocadamente, que a sociedade era um barril de pólvora e que a eles competia acionar a faísca para que a ‘pradaria’ (uma metáfora maoísta para a sociedade) ‘se incendiasse’. Nessas condições, era legítimo, sem dúvida, disferir ações armadas contra um poder que se baseava na força bruta”, afirma.

Nos dias que antecederam ao sequestro, o grupo se reuniu em Porto Alegre, de onde seguiria de carro até o Uruguai. Enquanto os guerrilheiros repassavam os últimos detalhes do plano, os dois filhos de Marília ficaram aos cuidados de Dilma Rousseff, cujo marido também participava da ação.

“A Dilma é uma mulher muito especial”, conta Marília.

“Meus filhos, que nunca tinham se separado de mim, passaram 15 dias com ela. E ela era uma mulher muito nova, que, teoricamente, nem sabia lidar com crianças. Mas ela deu a eles uma estabilidade emocional tão forte, carinho, cuidados, que eles nunca tiveram problemas. As pessoas dizem que ela tem um olhar duro, mas não é verdade. Ela é uma mulher de uma ternura absurda.”

Manchete ao redor do mundo
Sem autonomia de voo para ir muito longe, o Caravelle teve que fazer seu primeiro pouso de abastecimento em Buenos Aires, ainda que a contragosto das autoridades argentinas que tentaram, sem sucesso, impedir a decolagem do avião. A parada serviu também para que a imprensa internacional fosse informada do sequestro e da presença de uma guerrilheira com duas crianças a bordo.

“O mundo todo ficou sabendo que eu estava no avião com duas crianças”, conta Marília. “Foi o que salvou nossas vidas.”

Na madrugada de 2 de janeiro, o Caravelle pousou em Antofagasta, no norte do Chile, para o segundo reabastecimento. O clima no país governado pelo socialista Salvador Allende era favorável às causas guerrilheiras brasileiras, e os tripulantes puderam abastecer com tranquilidade e ainda receber comida e jornais.

A recepção seria muito diferente em Lima, no Peru, próxima parada de reabastecimento do Caravelle. Assim que pousou no Aeroporto Jorge Chávez, o avião foi cercado por militares peruanos. A ordem do presidente do país, o general Velasco Alvarado, era de negociar a todo custo uma rendição, vencendo os sequestradores pelo cansaço.

Àquela altura, no dia 3 de janeiro, a ação dos brasileiros já era manchete nos principais jornais do mundo, e o aeroporto também estava apinhado de jornalistas e políticos. O reabastecimento foi autorizado, mas as autoridades tinham uma proposta para os sequestradores: eles dariam asilo político para Marília e os filhos e, em troca, todos os reféns deveriam ser liberados.

“Não aceitei, lógico”, diz Marília. “Eles invadiriam o avião com meus companheiros lá dentro.”

Além do embate diplomático, um grave problema técnico ameaçava a partida do avião para Cuba. Uma pane elétrica impedia o acionamento da turbina direita e do sistema de refrigeração. Baterias trazidas da Colômbia eram muito velhas e não resolveram o problema do acionamento do motor.

Depois de muita negociação e vários momentos de tensão, baterias mais modernas foram trazidas do Chile. Finalmente, após 27 horas em Lima, o avião foi autorizado a seguir viagem para o Panamá.

“Eu passava o tempo todo com as crianças, contando histórias para elas, tentando distraí-las”, relembra Marília. “De maneira alguma me arrependo de nada, acho que tudo foi feito no momento certo, no lugar certo. E acho que o Cosmos estava torcendo por nós.”

Mais tensão
A nova parada foi igualmente tensa. Um coronel do Exército brasileiro estava no aeroporto panamenho e tentou convencer o tripulante que desembarcou para reabastecer a aeronave a voltar a bordo com uma arma e atirar no primeiro guerrilheiro que visse, criando condições para uma invasão. A proposta não foi aceita.

Mas não foi só. A turbina direita voltou a dar problema e, mais uma vez, precisou de várias baterias para ser acionada. Como se não bastasse, o Caravelle necessitava de um lubrificante para turbinas que, aparentemente, estava em falta no Panamá.

Finalmente, depois de cinco horas, o avião partiu para Havana.

A viagem final durou cerca de duas horas e, por muito pouco, o avião não sofreu uma pane. Sem lubrificante, uma das turbinas ameaçava parar a qualquer instante. Ainda assim, conseguiu pousar em segurança no Aeroporto José Martí.

“Cheguei em Havana quase delirando”, lembra Marília. “Passei a maior parte do tempo sem comer nem beber praticamente nada, por medo de envenenamento. Tampouco dormia, por causa das crianças.”

Um grupo de oficiais cubanos logo entrou no Caravelle perguntando quem era a mulher com os dois filhos. Carlos Lamarca, um dos chefes do VPR, tinha mandando uma carta para Fidel Castro pedindo atenção especial a Marília.

Ela viveria por dez anos em Cuba com os filhos, antes de voltar para o Brasil, em 1980, depois da Lei da Anistia. As histórias estão no primeiro livro de Marília lançado no Brasil, Habitando o tempo. Clandestinidade, sequestro e exílio, que chega às livrarias nesta semana.

“O Candomblé diz que existem 256 caminhos para a vida. Eu escolhi um deles, e não me arrependo.”

Fonte: BBC Brasil