Brasil é país que menos julgou e puniu crimes da ditadura na região, diz historiadora argentina

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Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina. Em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares.

Apesar dos elementos em comum – o pano de fundo da Guerra Fria, os conflitos internos que colocavam grupos de esquerda como ameaça à ordem nacional, o princípio da doutrina de segurança nacional -, cada um desses regimes foi marcado por particularidades.

E o mesmo se pode dizer do período posterior, a redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única – e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina Marina Franco, que pesquisa o tema.

Franco é professora da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del Cono Sur y Sus Legados (“Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e Seus Legados”, em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021.

A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder.

Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime.

O país levou à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 76 e 81 e, até março de 2022, a Justiça havia condenado outras 1.058 pessoas em 273 sentenças por crimes relacionados ao terrorismo de Estado.

eleições, o peronismo, não pensava em investigar e julgar.

Então o que se deu foi uma confluência de elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se julgasse.

O último elemento – e é importante que isso fique claro – é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e julgamento – ou seja, as políticas de Estado – criaram um consenso social sobre o que havia acontecido.

BBC News Brasil – Às vezes parece que o caminho é inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos e punições…

Franco – Justamente, mas o que aconteceu foi que, no final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido, sobre o desaparecimento forçado de pessoas.

Naquele momento, a maioria acreditava que essas pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da sociedade.

E aqui me parece importante destacar, pensando no caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para entender algumas das coisas que acontecem no país.

As políticas de Estado de memória, de justiça, as políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social, e acredito que a Argentina seja um desses casos.

Acho que o mais notável no caso argentino são os efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro, também existe.

BBC News Brasil – O Brasil parece um exemplo no sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora vê esse processo – é também um caso particular?

Franco – Bom, todos os casos são particulares. Nesse sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram.

O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida.

A Comissão da Verdade, como você mencionou, é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo.

E aí é importante agregar outro ponto. A lei de anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores ao regime – e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente.

Então há um interesse de todas as partes nessa possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina, porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos.

Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai, por exemplo, com seu Frente Amplio.

Isso faz com que o jogo político posterior decida como se vê a situação prévia. Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de forças.

BBC News Brasil – A ideia é de que poderia ser “desconfortável” para esses grupos tocar em assuntos como os grupos paramilitares de esquerda?

Franco – Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder, por exemplo, é constantemente “acusada” de ser guerrilheira.

BBC News Brasil – Parece haver uma tensão permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura, desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, “só varrem um lado, não varrem o outro”.

Franco – Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha sido a violência das organizações revolucionárias – que, aliás, na Argentina foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas.

Em certa medida essa discussão está resolvida aqui. Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível.

Acho que essa é uma diferença marcante, e é resultado das políticas de investigação e justiça.

BBC News Brasil – Também comentando sobre os áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de “coisa do passado”, que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a julgamento. Como historiadora e pesquisadora das ditaduras latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse período e da forma como tratá-los?

Franco – A importância dos áudios é absolutamente crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso aconteceu.

Me parece fundamental que isso seja divulgado, que circule, que seja discutido. Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as vozes negacionistas e as vozes revisionistas.

Um historiador não precisa dessas provas hoje no Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que, socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória, para que se entenda realmente o que aconteceu.

A verdade histórica não necessita de prova, mas, em um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro.

BBC News Brasil – Que consequências práticas esse processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no pós-ditadura têm?

Franco – Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos sociais massivos pró-democráticos.

Dificultam a criação de mecanismos de controle, mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis.

Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública [“seguridad interior”], que o Estado seja militarizado, que exista alguém que reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas – e socialmente rechaçadas.

BBC News Brasil – Outra questão quando se fala em redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo?

Franco – O processo de desmilitarização no Brasil foi muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado.

E não só o Estado, mas também as concepções sobre ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas. Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente repressivo.

E volto àquele ponto: a grande diferença é a situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder Executivo, mas não saem derrotadas.

O mesmo acontece com um outro grande caso, o do Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e controle de peso no jogo político.

Reportagem especial da BBC Brasil